Vida Simples Março de 2017 | Page 11

Design é também a forma de se relacionar. Você desconstrói a matéria e coloca importância. E, no processo de montar, você conta uma história (de um lugar, de uma comunidade, uma família)

Quando os portugueses chegaram aqui, eles propagavam que os habitantes locais, os índios, eram pessoas sem alma. Construiu-se um país escravizando, acreditando que as pessoas não tinham alma, desconsiderando o saber de quem aqui estava. Então não é em um ou dois anos que mudamos a maneira de pensar. Temos que olhar isso para daqui a 30, 40 anos. Mas temos como reverter a partir do nosso olhar, da nossa abordagem, não olhando o diferente como exótico. Por aqui, rejeitamos nossas três matrizes: o português é burro, o índio é vagabundo e o negro é safado. A partir do sangue do afrodescendente é que nosso país foi construído, e a gente não valoriza isso. E é a gente todo mundo, porque o país é preconceituoso. Essas nossas matrizes não estão incluídas no nosso repertório ou mesmo nas escolas. Tudo é visto como exótico ou como diferente. Falamos, por exemplo, da história das moradias brasileiras e nada se comenta sobre as ocas.

Você acredita que esses produtos, com tantas histórias embutidas, poderiam ser acessíveis para todos?

Não no ritmo de consumo que temos hoje. Não dá para produzir, por exemplo, uma panela de barro artesanal para todo mundo, para vender em larga escala. Você tem que pensar em toda a cadeia. Quanto de barro você vai tirar da natureza? Como fica a questão do transporte? O que a gente precisa refletir não é sobre todos terem esses produtos, mas a maneira como estamos consumindo as coisas. Quando eu falo de um produto desses, não falo só sobre ele. Estou falando sobre o tempo da natureza; sobre a maneira de as pessoas pensarem e estarem no mundo. Artesanato no Brasil, por exemplo, é visto como artigo de segunda categoria, como um brinde, como algo barato. Ainda existe uma desvalorização do que é feito à mão. Mas artesanato é saber, é ancestralidade. Uma peça de barro carrega muito saber, liberdade e resistência, a continuidade de uma vida, de uma história. É preciso desconstruir a maneira como as pessoas enxergam as coisas. Uma peça de artesanato é, assim, uma linha puxando um mundo de possibilidades. Uma bolsa da marca italiana Hermès, por exemplo, é feita à mão. E as pessoas fazem fila para comprar uma. Cada bolsa fala de tradição, de um celeiro que trabalha com os mesmos artesãos, num saber passado de pai para filho. Esse artigo nasce dessa história. E a marca só é cara porque está calcada em cima do saber e do feito à mão. Por que uma peça artesanal, por aqui, tem que virar brinde e ser barata? É uma percepção de colonização, de desentendimento.

De que maneira isso pode mudar a vida de quem adquire um produto assim?

A partir do momento que você tem em mãos uma peça cheia de história, você se conecta a isso e cuida desse objeto com um apreço especial. Você entende o valor não só do objeto em si mas de tudo que ele carrega, que tem a ver, também, com a sua própria natureza.

O termo descolonização do olhar é proposital?

Sim. Eu me faço esse exercício diariamente: com meus amigos, na minha relação amorosa, na relação afetiva com meus filhos, no trabalho. A gente cai nesse padrão, o da imposição, de não olhar para o outro como alguém que também tem uma sabedoria. A colonização, que desacredita no outro, é algo que está intrínseco na gente.

Você fala muito na “busca pela beleza”. Poderia explicar mais isso?

É a beleza que parte do entendimento de que não existe o exótico. É olhar de maneira mais aberta, menos preconceituosa para o outro. As pessoas olham para o índio, por exemplo, e acham bonitinho e exótico aquele homem vestido daquele jeito diferente. Mas não gostam se ele estiver com um celular. Você quer o índio ainda na estética do imaginário, do zoológico, porque ele não é uma

pessoa como você, é alguém para apreciar. Aí você não consegue enxergar a verdadeira beleza, ir além, não transcende. Tudo tem beleza quando você enxerga o outro como um igual; não como diferente.

Trabalhar na TV foi um grande aprendizado para você?

Sim. Fiz sete anos de Lar Doce Lar. Eu recebia muita crítica porque, de certa forma, eu julgava a beleza estética imposta ao trazer para um ambiente aquilo que não necessariamente as pessoas esperavam – armários planejados, por exemplo –, mas o que tinha relação com a história de cada um. As pessoas gostam de ver, na decoração, uma beleza minimalista, mas isso é europeu. O Brasil é barroco, exuberante, colorido. Mas, mais do que isso, no programa da TV, eu entregava dignidade, que era algo mais profundo. A porta de uma casa significa segurança

e privacidade, mas, em muitas residências pelo Brasil profundo, algumas famílias não têm nem porta em casa. Uma cozinha nova, um piso no chão, um sofá para sentar, uma cama para dormir não é luxo. É dignidade. E, além disso, eu entregava uma casa colorida, trazia para o ambiente a memória, a história das pessoas. E, para mim, o movimento não era só para quem estava recebendo. Aquilo era uma ferramenta pra reverberar. Era a primeira vez que se falava na TV sobre casa e se olhava para o ser humano como vida.

O que você chama de Brasil profundo?

É esse Brasilzão, enorme, que nasce além dos limites das grandes capitais. Mas mesmo nas metrópoles também existe um Brasil profundo, que é aquele que vai além da nossa vizinhança, da nossa rua, bairro, dos nossos trajetos diários e da nossa realidade cotidiana.

Para você, o que é design?

Tudo é design. O significado da palavra vem de desígnio, a necessidade de servir ao próximo. O homem não queria mais sentar no chão, então se designou um desenho para fazer uma cadeira. O resto é contar histórias para diferentes maneiras de se sentar. O homem não queria mais comer com a mão. Pensou-se num desenho e daí surgiu o garfo e a faca. Design não é estética. Hoje, o design virou uma apropriação estética e de agregar valor a algo. Esse objeto é de design, então ele é mais caro. Só que tudo tem design: a casa feia ou bonita, o móvel feio ou bonito. Tudo enquanto desígnio. E design é também a forma de se relacionar. Você desconstrói a matéria e coloca importância. E, no processo de montar, você conta uma história (de um lugar, de uma comunidade, uma família). Por esse olhar, o design é uma forma de redesenhar uma relação.

De que maneira isso pode mudar a vida de quem adquire um produto assim?

A partir do momento que você tem em mãos uma peça cheia de história, você se conecta a isso e cuida desse objeto com um apreço especial. Você entende o valor não só do objeto em si mas de tudo que ele carrega, que tem a ver, também, com a sua própria natureza.

O termo descolonização do olhar é proposital?

Sim. Eu me faço esse exercício diariamente: com meus amigos, na minha relação amorosa, na relação afetiva com meus filhos, no trabalho. A gente cai nesse padrão, o da imposição, de não olhar para o outro como alguém que também tem uma sabedoria. A colonização, que desacredita no outro, é algo que está intrínseco na gente.

Para você, o que é design?

Tudo é design. O significado da palavra vem de desígnio, a necessidade de servir ao próximo. E design é também a forma de se relacionar. Você desconstrói a matéria e coloca importância. E, no processo de montar, você conta uma história (de um lugar, de uma comunidade, uma família). Por esse olhar, o design é uma forma de redesenhar uma relação.

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