Vida Simples Março de 2017 | Page 12

A conversa começou inesperadamente por causa do tênis – talvez um tanto chamativo – que eu usava naquela tarde de setembro. “Gostei dos seus sapatos”, me disse o senhor desconhecido que estava logo à minha frente na longa fila para subir a catedral de Notre Dame, em Paris. Hervin era o nome dele: um homem simpático que usava boné e camisa polo listrada e que morava numa cidade interiorana dos Estados Unidos. Ele e a mulher, Barbara, faziam sua primeira viagem internacional por um motivo importante: comemorar os quase 40 anos de casados. Ali, passando alguns minutos de conversa com aquele casal, estávamos eu e meu marido, com a aliança na mão esquerda havia menos de uma semana. Subir os 422 degraus de uma escada espiralada e estreita era uma atividade que exigia um pouco de esforço. Barbara e Hervin seguiam dedicados, à nossa frente, compartilhando conosco uma certa cumplicidade silenciosa pela vista que esperávamos quando chegássemos ao topo. Na metade do caminho, porém, Barbara estava cansada e precisou parar. Por algum motivo, paramos com eles. Ela aceitou a água que eu tinha comigo e logo seguimos, até o alto da igreja, onde as gárgulas emolduram a vista da cidade. Tiramos algumas fotos juntos e depois compartilhamos os degraus da descida para, então, entrarmos novamente no mundo dos desconhecidos. Demos um “até logo” que na verdade significa um “tchau para sempre”. É isso o que o sociólogo alemão Valter Benjamin chamaria não de amor à primeira, mas à última chamaria não de amor à primeira, mas à última vista. Já se passaram alguns anos desse dia, que é um dos tantos encontros com desconhecidos que eu coleciono e levo comigo – provavelmente você também tem alguns desses na memória. Às vezes, foi um diálogo simples com alguém que sentou ao seu lado no metrô e ocupou o espaço do silêncio com alguma alegria. Ou dividiu com você a mesma inquietação pela demora da fila no caixa do banco. Cruzar o tempo todo com desconhecidos é como uma premissa de quem vive em qualquer metrópole. E, junto com isso, a possibilidade de também se conectar com o outro em nossa própria humanidade. “O que as cidades nos oferecem de mais atraente é a chance de vislumbrar constantemente mundos estranhos, que não são os nossos e que podemos vir a conhecer”, me conta a antropóloga Janice Caiafa, que mora no Rio de Janeiro e se dedica a estudar como acontecem essas trocas entre desconhecidos nos meios de transporte coletivo de várias cidades. “Todo ser humano é um estranho ímpar”, escreveu Carlos Drummond de Andrade em seu poema Igual-Desigual. Concordo com ele. Em cada um de nós existe um universo rico para além do passo apressado ou do estresse que o dia a dia nos impõe.

É preciso abrir a porta

“Não fale com estranhos” deve ser uma das recomendações que as crianças mais escutam. Não seria por menos: os pequenos parecem mais abertos para conhecer o mundo, nutrindo uma curiosidade inocente pelo que está fora, e, sem recursos para se protegerem, estão mais suscetíveis ao perigo do desconhecido. Mas talvez na fase adulta a gente possa equilibrar melhor essa equação. Agora mais ha

PENSAR

Fale com estranhos

As conversas que temos com desconhecidos, ainda que sejam breves, são uma oportunidade para exercitar o nosso olhar delicado e o sentimento de conexão

TEXTO Débora Zanelato

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