Vida Simples Março de 2017 | Page 10

atrás de uma reconquista cultural e encontrar o artesanato deles, independentemente do que o mercado queria ou não. A gente foi lá para fazer troca, não fomos para resgatar, porque ninguém precisa ser resgatado; nem para fazer capacitação, porque todos são capazes. Ficamos, e, nos primeiros dias, as pessoas não traziam nada. Porque, nesses lugares, o massacre do tal do desenvolvimento e da classificação do baixo índice de desenvolvimento humano influencia a vida das pessoas, que ficam com uma autoestima bem baixa. Como consequência, consideram sem valor aquilo que seus ancestrais faziam. Porque, em geral, a gente não dá valor para o que vem da terra, da nossa herança. Até que, um dia, descobrimos na casa de uma anciã um cesto, que eles chamam de bogoió, um objeto de palha de carnaúba feito para guardar a colheita da roça. Mas, com o tempo, esse cesto foi trocado por baldes de plástico. E o trabalho de cestaria passou a ser colocado de lado, porque isso os conecta com a época em que eles não podiam comprar, com a pobreza, e então o rejeitam, têm vergonha daquele objeto. Lembro que a anciã, a dona do cesto, falou que aquilo era lixo. Ela disse que ia jogar fora, que era algo que a avó dela fazia. E era um cesto lindo, que deveria estar num museu, porque conta a história daquela comunidade. E daí dissemos que era aquilo que procurávamos. Pegamos aquele objeto e a partir dele nos inspiramos e reconquistamos dentro deles esse saber, de como o cesto era feito, para que servia. E as pessoas foram contando as histórias. Foi assim que surgiu toda uma coleção de cestos (vendidos nos grandes centros urbanos).

O que essa ação de pegar algo que era considerado lixo e transformar em um produto desejado representou para eles?

A primeira coisa que eles acharam estranha foi a nossa abertura para querer aprender com eles – e não em ensinar. E, depois, produzir algo, e isso voltar em forma de dinheiro, o que foi fundamental. Porque o dinheiro tem um papel importante, aí fez com que a comunidade acreditasse que aquele objeto tem valor fora – porque dentro da comunidade não tem mais, é lixo. Eles tiravam sarro dizendo que ninguém ia querer comprar aquilo. Quando veio a primeira leva de venda de cestos, eles não acreditaram. O resultado disso tudo é que hoje eles voltaram a acreditar nos saberes deles. Ou seja, a partir do bogoió, criou-se uma potência dentro da comunidade, uma maneira de vivenciar a chamada economia criativa. Ver o saber de seus ancestrais com outros olhos, com mais valor, fez com que valorizassem também a cultura deles: a música, a forma de comer dos avós e bisavós, a maneira

de viver. A condição em que eles vivem lá é sem qualidade, saneamento, educação qualificada, sem visão de futuro, sem saúde. Mas a ideia, hoje, também é criar uma realidade com mais saúde, educação e bem-estar, só que preservando a cultura. Isso vem a partir desse movimento, porque você joga luz naquela comunidade até então esquecida.

A partir do bogoió e do trabalho de cestaria, os habitantes da pequena Várzea Queimada retomaram o fio da própria história e sua força

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