Em Portugal, António Ferro 1, também um dos iniciadores do modernismo, editor da importantíssima revista Orfeu, celebra a musa genuinamente rollinatiana, à qual contemporaneamente chamaríamos de um caso de anorexia:
MADEMOISELLE ESQUELETO
Cinco horas da tarde. Hora amável, hora fumegante, em que o sol arrefece sobre a cidade, como folha de chá em taça do Japão. Subo o Chiado, o carnavalesco Chiado, ascendo religiosamente ao Largo das duas Igrejas e entro na Garrett para assistir, como todos os dias, àquela missa profana... Há um grulhar de sedas, de louças, de risos, de atitudes. Certos grupos, certas mulheres quimonizadas, lembram japonerias num rebordo de xícara – casca de ovo... Os tziganos – alquimistas do Ritmo – envenenaram os sentidos, dispersos pelas mesas, como as pedras de dominó. Os dedos, os olhos, os corpos ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenhome a soletrar as atitudes...
Mademoiselle Esqueleto entrou agora. O seu perfil ensanguenta-me as pupilas. Não é um corpo, é um vestido numa santa de roca...
Mademoiselle Esqueleto é o poema de Rollinat, feito carne, por outra, feito osso. Parece um fetiche.
Dir-se-ia recortada num dente de elefante. Mademoiselle Esqueleto é de marfim. Não tem articulações, tem arames. Lembra a boneca dum ventríloquo. Só tem cabeça e vestido. Por debaixo do vestido sente-se a mão do saltimbanco, a manejá-la...
Mademoiselle Esqueleto não foi gerada num ventre, foi dada à luz num cérebro. É uma crônica póstuma de Lorrain.
Mademoiselle Esqueleto senta-se, digo melhor, pousa como uma falena.
Circunvaga o olhar – penugem de ave... Minúscula, indecisa, ligeiro salpico de humanidade, ela é o centro daquela circunferência. À força de exígua, torna-se enorme. Todos olham para ela, todos duvidam, todos reparam.
Será possível? Mademoiselle Esqueleto é uma paciência de Deus. Admiro-a como admiro um poema escrito, em miniatura, na folha dum papiro. Mademoiselle Esqueleto, inconstante, superficial, é uma aposta do Criador. Ela rompe às tardes, na Garrett, como um aeroplano...
Jornal O " Pharol ". Juíz de Fora, Minas Gerais. 16 de junho de 1926, p. 4.