RPL - Revista Portuguesa sobre o Luto 1 | Page 41

De self com a dimensão espiritual: devido aos processos de adaptação inerentes ao luto, há uma reorganização de pressupostos e crenças, que podem ressignificar a experiência espiritual.

Em casos de luto pela perda de um filho, em geral, os homens assumem o papel de suporte à mãe, desconsiderando e invalidando seu próprio pesar. Casellato (2015, p.21) exemplifica isto com um relato clínico:

“Há alguns anos atendi um casal que enfrentava o luto pela perda de um filho (...) a busca de ajuda tinha como demanda explicita ajudar a mãe a lidar com a dor e ajudar o pai a dar suporte a esposa (...) Numa breve pausa no relato desesperado da mãe, o pai encorajou-se e, numa postura quase que confessional, revelou que não estava presente [no] momento [do] enterro do filho. A revelação foi recebida com surpresa e choque pela mãe: “Como assim? Você não ficou para ver seu filho ser enterrado? Que pai faria isso?” O pai, cabisbaixo, numa atitude de um sentenciado, respondeu com voz baixa: “Um pai que sofria tanto que não suportava ver tal cena.”

Fica claro aqui o aspecto solitário do luto não franqueado, como também o peso das normas sociais imputadas ao enlutado.

Kauffman (2002) estudou a motivação intrapsíquica do luto não reconhecido, explorando o profundo senso de vergonha presente, seja por motivos comportamentais, sentimentais ou das normas sociais sobre o relacionamento perdido. Desta forma, o não reconhecimento tem sua raiz no próprio enlutado, que de forma consciente ou não, censura seu pesar, inibindo sua expressão. Para o autor, o próprio self é o agente e vítima da censura, dizendo a si mesmo “Não permita que este luto seja real, isto não é uma perda, isto não é um luto”. A este fenômeno Kauffman denomina “auto não reconhecimento do luto”.

No luto não reconhecido há um fracasso do ambiente social em oferecer suporte e aceitação ao enlutado, que lhe garantiriam segurança, conexão e pertencimento. A experiência do luto será incrementada por sentimentos de solidão e alienação (CASELLATO, 2015). Por isso, os grupos de ajuda mútua podem fornecer um importante espaço de elaboração e expressão da perda, garantindo o sentimento de compreensão e pertença ao enlutado, encontrando pessoas que passaram por uma situação parecida e que podem compreender e apoiar os sentimentos do luto.

Doka (1989) afirma que o luto não reconhecido traz para o enlutado pouca ou nenhuma oportunidade de viver sua perda em público. Assim, a cultura onde o individuo viveu, cresceu e moldou seus comportamentos passa a ser o protagonista nesta não autorização. As normas e valores da cultura são fundamentais personagens nos lutos não reconhecidos.

É comum, na clínica do luto, o recebimento de homens encaminhados por seus médicos para uma avaliação psicológica. Estes apresentam queixas físicas recorrentes e importantes, entretanto, sem uma causa aparente. Estes lutos não estão resolvidos, mas sim abafados, em uma tentativa de proteção e controle para condução da vida. Aqui, o “auto não reconhecimento do luto” exerce uma função de solução temporária, mas quecai por terra quando se iniciam os sintomas físicos e/ou sofrimento emocional. Vale ressaltar que

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