RPL - Revista Portuguesa sobre o Luto 1 | Page 31

antes de ontem? Bom, ela mexia mais quando eu me deitava de bruços… Não! Eu senti a minha filha mexer-se ontem! Isto só pode ser um equívoco!

Neste debate, questionei sobre a certidão, enterro, velório. Afinal ela morreu… E eu queria enterrar a minha filha! Não é isso que se faz?! Não… Ela não era minha filha… Ela era um feto sem valor, com 19 semanas e não se pode enterrar…

Mas como assim? São os trâmites… Ou seja, nem uma certidão a minha filha terá? Mas será que ela é invisível? Indagações à parte, fiquei ciente que devia entrar em trabalho de parto. Sim, parir… Expelir… Mas expelir como? Ela é um objeto? Se ela iria nascer como os irmãos, porquê esse termo? Ela não tinha direito de nascer, ainda que sem vida?

Tomei o primeiro comprimido: nada! Seis horas depois, tomei o segundo comprimido… e nada! Nesse intervalo, chegaram dezenas de enfermeiras e médicos, repetindo incessantemente que eu ia expelir um feto. Eu não sentia nada. Fisicamente, não parecia que eu estava num hospital com um bebé sem vida. Mas, cada vez que ouvia a palavra “expelir” eu tinha a mesma sensação que tive quando vi aquele corpo inerte sem o pisca-pisca do coração.

Debatia-me a todo o momento: não vou expelir nada! A minha filha vai nascer, ela é uma menina, ela tem nome, ela não é um feto que eu vou expelir! Entre dois dias e quatro comprimidos, eu entrei em trabalho de parto. Eu e mais duas mães. Muitas vezes penso, o que seria de mim, se não fosse o meu marido! A dor não doía tanto quanto o barulho dos aparelhos monitorizando a frequência cardíaca daqueles outros bebés que estavam para nascer. Não era correto, eu estar numa situação destas, ao lado de mães que esperavam pelos seus filhos saudáveis e vivos!

Das 14:00 às 00:50, senti contrações frequentes, sem cessar. Em nenhum momento gritei ou pedi ajuda. Eu queria fazer aquilo sozinha. Queria que fosse um momento só meu e da minha filha. Ainda que fosse o último momento, eu queria que fossemos só nós. Mas, não foi assim. Deram-me tantas injeções: umas para isto, outras para aquilo… O meu marido manteve-se firme o tempo todo! E as 00:55 pensei “isto é real, está mesmo acontecer…” Mesmo naquele hospital e naquelas condições, eu achava que os bebés só podiam nascer vivos. Parecia que conforme a ficha ia caindo, as dores iam aumentando, o desespero ia aumentando… E a impotência também ia aumentando.

Entre um toque e outro, ouvi um “faz força, eu ajudo-te, está na hora! Faz força!”… 01:41 não foi como das outras duas vezes (dos meus filhos). Foi mais rápido, não era um bebé gigante como os irmãos… Era um pequeno e frágil bebé…

Eu gritava muito, muito mesmo porque assim que ela nasceu, a médica cobriu o seu corpinho, queria certificar-se que estava em perfeitas condições para que eu pudesse vê-la. Eu estava tão descontrolada, não com a dor mas com o medo de não poder ver a minha pequenina. A médica prometeu e cumpriu mas não foi como eu imaginei. Ela tirou o lençol de cima por dois segundos e colocou-o de novo, pedindo um saco transparente. Nesse momento deram-me outra injeção: eu fiquei paralisada e não conseguia expressar nada.

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