LiteraLivre nº 7 – janeiro de 2018
A pequena consciência do delírio que me atacava me fez ter uma idéia racional,
fixar o meu olhar no rosto dela na esperança de que a imagem real voltasse.
Entretanto, o delírio apenas deu um salto de progressão, a boca veio à frente e
os olhos se recuaram para o fundo ficando agora em desfoque. Os lábios
carnudos tomaram proporções gigantescas, o incisivo esquerdo, levemente
entortado, virou uma longa cobra branca que saltou de sua boca e se enroscou
no meu pescoço. Levei as mãos à garganta buscando ar, tossi, sufocava, era o
fim. O ônibus deu uma freada abrupta que me levou a bater com a cabeça no
banco da frente.
“Você está bem? Eu não queria falar mais sobre isso. Mas foi você que começou,
por quê”?
O som daquela voz fina e aguda como o berro duma cabritinha - como fora
apelidada pelos irmãos -, desfez o desespero irreal em que eu havia me metido.
Mirei-a nos olhos, e aos poucos a cobra branca foi voltando à boca dela, virando
novamente o incisivo esquerdo, depois a boca foi para o fundo da cara, saiu de
foco.
Agarrei o seu dedo que outra vez com aquela unha me furava as costelas,
apertei-o com calma como se dissesse que eu estava bem. Virei-me outra vez
para a janela. Nossas mãos agora se entrelaçaram, ficamos assim de mãos dadas
e em silêncio.
Aos poucos a minha respiração foi voltando ao normal. Como estaríamos, e
como seria eu se eu não nunca tivesse ido embora do Brasil. Tudo seria como
antes? Nem a imaginação me dava uma resposta que me contentasse.
“Tudo passa. Isso é a mais triste condição da vida”. Disse ela como se me lesse
os pensamentos, como se resignada ao fato de que tínhamos seguido vidas tão
diferentes, embora tivéssemos prometido nunca nos abandonarmos.
“No dia em que fui buscar meu passaporte com o pedido de visto rejeitado pela
terceira vez, fiquei arrasada. No ônibus de volta para casa rasguei e fiz em
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