Revista LiteraLivre 7ª edição | Page 76

LiteraLivre nº 7 – janeiro de 2018 Imaginários A. P. de Melo África do Sul “Você nunca saiu do Brasil”. Eu lhe disse sem me virar da poltrona do ônibus interestadual onde sentávamos lado a lado, mantive o rosto colado à janela e os olhos fixados nas estrelas do cerrado. “Rasguei o passaporte na terceira vez que me negaram o visto, foi humilhação demais, agora não quero mais ir, meu lugar é aqui onde nasci”. Respondeu ela enquanto girava o corpo magro em minha direção como se buscasse a minha face impenetrável. Percebendo a sua insistência, fechei os olhos e imaginei os dela, grandes e esverdeados, cujas pestanas piscavam mais aceleradamente que a boca quando ela falava. Grandes e grossos eram também os lábios, desproporcionais para um rosto de mulher pequena. Era como se nela olhos e boca competissem, nunca podendo se enfrentar numa batalha física atacavam-se ritmicamente. “Olha pra mim. Ei, me ouviu não”? Disse ela me cutucando com o dedo. Resignando-me ao seu apelo que agora era já era físico e que fazia doer minhas costelas por causa da unha pontiaguda, virei para olhá-la. No meu pavor de encará-la, delirei. Era como se os olhos dela se despegassem do rosto e levitassem a um palmo de distância da cara em sentido horizontal enquanto a boca permanecia ao fundo, colada ao rosto, fora de foco. As pestanas longas fechavam-se e abriam-se num descompasso frenético enquanto que ao fundo e fora de foco, a boca fazia o mesmo. Aquela imagem me levou ao pânico, quis furar com os dedos aqueles olhos grandes e verdes que pareciam pregados a mim. 71