Revista LiteraLivre 7ª edição | Page 124

LiteraLivre n º 7 – janeiro de 2018
Creio que o que mais irritava Geraldo era a cara de Deusdêti. Ria o neguinho, mas ria gostoso, com a cara mais lavada e safada do mundo, fazendo caretas para a cara de retrovisor de Geraldo.
O pé ia fundo no freio, sem se importar com o grito de“ cê tá carregando num é porco, não!” dos passageiros sacolejados. A parada brusca derrubava os meninos depois de cheirarem a lataria do ônibus e, ora ou outra, um ficava no asfalto, correndo o risco de ser“ pisado” pelos veículos que vinham logo atrás ou algum que estivesse tentando ultrapassar Geraldo.
Mas adiantava alguma coisa a lição? Adiantava, não! No outro dia lá estavam eles e, no meio deles, a cara safada do neguinho Deusdêti.
E o ritual era o mesmo: 1: eles escondiam-se atrás dos passageiros e, na hora da arrancada, se atracavam ao ônibus; 2: Geraldo os percebia – menos Matheus Gordinho- pelos retrovisores; 3: a freada brusca, as caras na lataria e a queda; 4: Geraldo descendo do ônibus, bufando de raiva, cuspindo sua frase:- Eu ainda pego você, seu moleque! E ele esquecia-se dos dois, e só tinha olhos, raiva e cuspe para o neguinho
Deusdêti.
- Você vai ver o que ainda faço com você, neguinho safado!, enquanto o menino desaparecia morro acima e os passageiros quase levavam o ônibus abaixo:“ Simbora! Simbora, motô!”, alheios à dor e ao ódio de Geraldo. Como estava alheio o amigo Juvenal, que só ouvia:- Cansado, Juvenal, cansado! Na terça, era folga. Na quarta, Geraldo estava de volta. E de volta estavam os meninos. Saíra de casa decidido a acabar com aquilo.“ Hoje ponho fim nessa disgraça!”, prometeu-se. E, talvez, Geraldo tivesse razão, e Deusdêti fosse mesmo apenas um menino de vida desgraçada, abandonado à sua própria sorte, sem alguém em casa para ensinar-lhe a boa educação, o respeito aos mais velhos. Talvez Deus estivesse presente em sua vida apenas em seu nome, por
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