LiteraLivre nº 1
em seu quarto e fosse motivo de mais brigas (embora não houvesse necessidade de
motivos para que elas se tornassem cada vez maiores e mais frequentes, naqueles
últimos anos em que ele mais fumou na vida, antes que cada um dos três fosse viver
sozinho). Henrique o ouviu, com a voz mais alta, todo alerta devido à interrupção do
trabalho, dizer, ainda carinhoso, porém de um carinho, uma polidez à beira da
condescendência: Mas é um fluxo, Henrique, e o som incomoda, muito tanto, é
perturbador para a concentração de que eu preciso; ainda que seja o Caetano, aliás
(anteouvia ele em sua mente o argumento seguinte do outro, sobre a suavidade das
músicas que escolhia sempre que ele estava concentrado); é o único momento em que eu
peço para não ser perturbado: quando estou escrevendo.
Havia em sua voz uma nota levíssima, rarefeita, de algo maior que dor e
aborrecimento, um prenúncio de desespero quase, que parecia vir mais de confessar
assim em voz alta a escrita e a entrega que ela exige do que da discussão em torno do
volume do som. Mas Henrique não ouviu.
Reabriu a torneira, terminou de se enxaguar e passou a se barbear no vapor do
banho, em silêncio. Isto exatamente tudo o que Marcos ouviu: o silêncio do outro, por trás
da voz que cantava Um Canto de Afoxé para o Bloco, por baixo do barulho do chuveiro e
do aquecedor e entremeando feito gás em expansão os ruídos débeis que vinham da rua,
aquela rua tranquila de amendoeiras já velhas, que nem mesmo forças para farfalharem
ao vento costumavam ter.
Deixou o cigarro aceso no cinzeiro e foi até o quarto, sem olhar para dentro
quando passou pelo banheiro, a porta aberta para deixar entrar a música que infelizmente
não sabia, em sua natureza de onda, entrar toda ali e se dissolver no vapor d'água, feito
se dissolve na areia a onda do mar. Aumentou o volume do som, porém menos do que
tinha abaixado antes. O tampo da mesa de cabeceira não vibrava, nem de leve. Voltou ao
escritório, fechou a porta.
Mas Henrique só ouviu a voz do namorado, irritada porém rendendo-se,
carinhosa, sempre carinhosa: Pelo menos se apressa, garoto. Garoto era de fato o termo
mais carinhosamente rendido que o namorado usava para ele. Apressou-se.
Marcos não ouviu o som inexistente daquele apressar-se, sem gavetas batendo
ou cabides correndo pelo metal da barra do armário, a roupa já escolhida aguardando em
cima da cama. Ouvia apenas a música, que agora até mais do que quando primeiro se
incomodou com ela prendia-lhe a atenção, pela fresta embaixo da porta, pela fechadura,
pelos recessos do cérebro que conhecia cada verso seguinte, cada entonação de cada
canção, impedindo-o por completo de trabalhar.
Quando pronto, som desligado, antes de sair do apartamento, Henrique abriu a
porta do escritório e sorriu para Marcos, sentado distraído frente ao computador. Um novo
cigarro ainda aceso, já quase ao fim, no cinzeiro em cima da bancada, porque não
morava mais com os pais e podia vez ou outra deixar a fumaça se espalhar.
Sempre fumava enquanto escrevia. Ou melhor, quando interrompia a escrita. Na
maior parte das vezes o motivo era mesmo interrompê-la, simplesmente, livrar-se
brevemente daquela entrega que tanto exigia e tanto o chamava, irresistivelmente.
O cigarro largado no cinzeiro de vidro, ao lado de Marcos sentado bem ereto, indicava
que suas ideias já se reorganizavam quase totalmente, a urdidura das palavras no limiar
de explodir na próxima frase, a direção a ser seguida já refixada na mente.
Henrique foi até ele com a desinibição e leveza dos inconsequentes, deu a volta à
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