Revista LiteraLivre 1ª Edição | Page 53

LiteraLivre nº 1 em seu quarto e fosse motivo de mais brigas (embora não houvesse necessidade de motivos para que elas se tornassem cada vez maiores e mais frequentes, naqueles últimos anos em que ele mais fumou na vida, antes que cada um dos três fosse viver sozinho). Henrique o ouviu, com a voz mais alta, todo alerta devido à interrupção do trabalho, dizer, ainda carinhoso, porém de um carinho, uma polidez à beira da condescendência: Mas é um fluxo, Henrique, e o som incomoda, muito tanto, é perturbador para a concentração de que eu preciso; ainda que seja o Caetano, aliás (anteouvia ele em sua mente o argumento seguinte do outro, sobre a suavidade das músicas que escolhia sempre que ele estava concentrado); é o único momento em que eu peço para não ser perturbado: quando estou escrevendo. Havia em sua voz uma nota levíssima, rarefeita, de algo maior que dor e aborrecimento, um prenúncio de desespero quase, que parecia vir mais de confessar assim em voz alta a escrita e a entrega que ela exige do que da discussão em torno do volume do som. Mas Henrique não ouviu. Reabriu a torneira, terminou de se enxaguar e passou a se barbear no vapor do banho, em silêncio. Isto exatamente tudo o que Marcos ouviu: o silêncio do outro, por trás da voz que cantava Um Canto de Afoxé para o Bloco, por baixo do barulho do chuveiro e do aquecedor e entremeando feito gás em expansão os ruídos débeis que vinham da rua, aquela rua tranquila de amendoeiras já velhas, que nem mesmo forças para farfalharem ao vento costumavam ter. Deixou o cigarro aceso no cinzeiro e foi até o quarto, sem olhar para dentro quando passou pelo banheiro, a porta aberta para deixar entrar a música que infelizmente não sabia, em sua natureza de onda, entrar toda ali e se dissolver no vapor d'água, feito se dissolve na areia a onda do mar. Aumentou o volume do som, porém menos do que tinha abaixado antes. O tampo da mesa de cabeceira não vibrava, nem de leve. Voltou ao escritório, fechou a porta. Mas Henrique só ouviu a voz do namorado, irritada porém rendendo-se, carinhosa, sempre carinhosa: Pelo menos se apressa, garoto. Garoto era de fato o termo mais carinhosamente rendido que o namorado usava para ele. Apressou-se. Marcos não ouviu o som inexistente daquele apressar-se, sem gavetas batendo ou cabides correndo pelo metal da barra do armário, a roupa já escolhida aguardando em cima da cama. Ouvia apenas a música, que agora até mais do que quando primeiro se incomodou com ela prendia-lhe a atenção, pela fresta embaixo da porta, pela fechadura, pelos recessos do cérebro que conhecia cada verso seguinte, cada entonação de cada canção, impedindo-o por completo de trabalhar. Quando pronto, som desligado, antes de sair do apartamento, Henrique abriu a porta do escritório e sorriu para Marcos, sentado distraído frente ao computador. Um novo cigarro ainda aceso, já quase ao fim, no cinzeiro em cima da bancada, porque não morava mais com os pais e podia vez ou outra deixar a fumaça se espalhar. Sempre fumava enquanto escrevia. Ou melhor, quando interrompia a escrita. Na maior parte das vezes o motivo era mesmo interrompê-la, simplesmente, livrar-se brevemente daquela entrega que tanto exigia e tanto o chamava, irresistivelmente. O cigarro largado no cinzeiro de vidro, ao lado de Marcos sentado bem ereto, indicava que suas ideias já se reorganizavam quase totalmente, a urdidura das palavras no limiar de explodir na próxima frase, a direção a ser seguida já refixada na mente. Henrique foi até ele com a desinibição e leveza dos inconsequentes, deu a volta à 48