LiteraLivre n º 1
Marcos e Henrique
Thássio Ferreira Rio de Janeiro / RJ
Conheciam-se profundamente . Embora ainda estivessem em idades em que não se conhece profundamente nem a si próprio , que dirá a outra pessoa : um deles com vinte e nove recém completados , no auge do que o outro , de vinte e quatro , dizia ser a " melhor fase do homem , quando o vigor , ainda pulsante , ganha experiência ".
Embora também estivessem há pouco tempo juntos , um nada além de três anos , o que já é quase não tão pouco , mas ainda não tanto . Dois desses anos dividindo o apartamento antigo , que testemunhava a construção daquela vida em comum com a sonolência de quem já vira assassinatos e suicídios afetivos e desistira de tentar compreender a humanidade .
Entretanto , entretanto , apesar de todos os entretantos , conheciam-se profundamente . Marcos levantou-se , os pés descalços , e foi até o quarto no fim do corredor , cuidando para não esbarrar em nenhuma das pilhas de livros que aguardavam resignadas pelo chão que ele instalasse a prateleira comprada há semanas , também ela ao chão , ao lado dos livros . Contornou a cama e diminuiu o volume do som que fazia vibrar quase imperceptivelmente o tampo da mesinha de cabeceira – enquanto calhou lembrar-se da infância , olhando para o móvel : dos raros momentos de calmaria , quando sua mãe o colocava para dormir e sempre deixava um copo d ' água ali ao alcance , na " mesinha de cabeceira ", como ela dizia , nunca no " criado-mudo ". Voltou ao escritório .
Henrique não ouviu o volume ser diminuído . Ouviu , sim , a voz de Marcos , contrariada mas ainda carinhosa , roufenha , uma entonação só dele , sempre , sempre : Henrique , abaixa um pouco o Caetano , por favor , estou tentando trabalhar . Mesmo com toda a intimidade , ele sempre usava por favor e obrigado . E todas as outras fórmulas de gentileza . Nas mais pequenas coisas . Costumava dizer que falta de educação , ainda que por pressa , ou pela própria intimidade , ou por qualquer razão , era imperdoável . Gostava de cultivar a amabilidade com devoção quase religiosa . Além de imperdoável , achava a descortesia mortal : " Quem não diz por favor está a um passo de mandar tomar no cu o outro que só pediu licença . Na rua pode acabar rendendo um tiro . Em casa , um bilhete de despedida ". Henrique fechou a torneira e parou de se banhar por um instante .
Marcos não ouviu o fluxo de água interromper-se , o silêncio ao fim das gotas e do zumbido do aquecedor . Ouviu um suspiro e a voz do outro em certa mágoa , certa irritação : É rápido , Marcos , você sabe o quanto eu gosto de ouvir música enquanto me apronto , e que eu já vou sair . O relógio do computador indicava dez e dez , agora dez e onze . Parou de escrever . Acendeu um cigarro .
Henrique não ouviu os passos e a janela de esquadrias velhas e rangentes se abrindo à amendoeira e seus macaquinhos acostumados ao ruído de alumínio deslizando , olhares e fumaça de cigarro – Marcos tinha o hábito de fumar sempre à janela , desde quando morava com os pais e não queria deixar que o cheiro enjoativo se impregnasse
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