LiteraLivre nº 1
Babilônia. Cresce em João um asco por essa gente, porque foi o dinheiro deles que
comprou a sua única riqueza, o seu bem mais valioso. Foi o dinheiro deles que levou de
João a sua paz. João caminha apressado porque o samba não é afeito a esperar. Já no
Arpoador, as espumas das ondas fazem João recordar a brancura das plumas de Ritinha
no distante carnaval em que se conheceram. Ela, corpo em sarabanda, tremelicando as
trigueiras ancas, abria em seu redor um círculo de admiração. Ele, estacado no meio da
multidão, o sangue assanhado, tinha os olhos enfeitiçados pelos sortilégios da mulata que
parecia levitar no centro do carnaval. Enfeitiçado, nem percebeu quando a moça passou a
sambar em seu derredor, circunavegando seu corpo, ilha de prazer, ele, o escolhido, o
eleito, terra selvagem a ser desbravada. E, no delírio do carnaval, os olhos de um dizendo
aos olhos do outro o desejo de seus corpos. E João foi rei, e João foi estrela, e João foi
madeira de fogueira. E João conheceu finalmente o amor...
Agora, emaranhado nas ruas de Ipanema, com seu teto de folhagens, João pensa
ouvir os batuques do samba de outrora, os mesmos batuques que o conduziram aos
braços cheirosos de Ritinha naquele feliz carnaval de sua vida, o único carnaval do qual
consegue se lembrar, como se a tal festa da carne não houvesse ocorrido senão uma
única vez. Mais adiante, João compreende que a batucada não vem do antigamente, mas
que retumba no presente, ecoando na estrangulada noite do agora. E enfim João
vislumbra, lançado no meio da rua, um facho de luz expulso do bar Vinte de Novembro,
seu destino e seu fim. É de lá que pulsa o sangue do samba.
O bar está em polvorosa, com grande azáfama de gentes. O samba, no seu
compasso cardíaco, perverte as pessoas, instala nelas um assanhamento de fogo, de
labareda, bulindo com elas por dentro, afrouxando nervos e músculos, libertando dos
corpos a malícia da carne. E muita pele suada de mulata procura no corpo de João o seu
cais, o seu desvelo, o seu descanso. E muito braço de homem, risonho de safadezas,
aperta o amigo João, abraça o parceiro João. E muita boca de birita, melada de
embriaguez, despeja na orelha de João manhas e promessas de mulheres e camas. E os
copos tilintam, erguidos na luxúria do brinde. E o samba cresce, imenso, enorme,
poderoso, grassando de perna em perna a volúpia do seu veneno. João finalmente está
entre os seus. E entre os seus, João bebe, João canta, João dança, sem que ninguém
perceba a sua amargura infindável, a sua solidão medonha, abismo tão negro quanto a
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