Revista LiteraLivre 1ª Edição | Page 25

LiteraLivre nº 1 sua pele, a sua tristeza de pedra, inabalável, presentes ofertados pela mão da mulata Ritinha ao abandoná-lo na espessura das trevas. E a noite de então é a noite de João! Tudo tem seu fim: o amor tem seu fim, a noite tem seu fim, o samba tem seu fim. E agora, após o rebuliço das pernas e o delírio dos copos, João Gostoso caminha sozinho e atordoado na madrugada em declínio. Da banda do mar, um clarão anuncia o parto da manhã de um dia azul. E João, homem feito de amor e desesperança, sem saber um jeito de esquecer, não faz outra coisa senão recordar... Ela, que já não tem mais nome; ela, que já não tem mais corpo; ela, que já não tem mais voz... Ela, que agora, neste agora de João, é apenas aquela que, em noite nefasta, ele viu descer de dentro de um luxuoso carro branco, brilhante, como aqueles de Copacabana, toda ela vestida de claridade, de anel reluzente no dedo, nos braços de um homem que a beijava e a cobria com mãos de desejos. Aquilo foi como uma faca no coração de João! Depois, as palavras dela queimando como brasa a pele de João: “João, você me desculpa? Você é o homem mais bonito desse mundo, João! Mas você é ninguém e eu nasci pra ser rainha!” João nunca mais viu Ritinha, que foi embora viver seu sonho de rainha. Afundado num tempo de angústias, João sobreviveu e se esqueceu do homem, do luxuoso carro branco e das palavras de brasa sopradas pela boca de Ritinha. Mas não pôde se esquecer dela, não soube se esquecer dela. E Ritinha ficou ali, guardada no fundo dos olhos de João, envolta nas plumas de um fabuloso carnaval, pairando sobre a face de todas as coisas. João está agora à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, enquanto um último resto de madrugada se recolhe para detrás da carcunda das montanhas. E João a vê pela última vez. É e la. É Ritinha, no seu abundante corpo de mulata, que sobe à superfície do espelho d’água, requebrando as ancas no cerco dos admiradores. É ela. Cravada nos olhos de João, dançando em torno de João, buscando o corpo de João, naquele carnaval que não deveria ter fim. E João não quer mais suportar, porque a saudade, gota a gota, enche o peito de João. É ela. E João pensa que já não vale mais a pena, que aquilo já não é viver, é arrastar-se, arrastar-se para o nada, porque para ele só existe o nada. É ela. É somente ela. E João abre os braços, tal qual o Cristo Redentor sobre o Corcovado, e se atira na Lagoa Rodrigo de Freitas para morrer afogado. A morte de João Gostoso coube apertada numa curta notícia de Jornal. 20