Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 77

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 Era primeiro de janeiro e tanto o mar quanto as pessoas achavam-se de ressaca naquela manhã. Não havia babás com suas crianças, nem surfistas, banhistas ou caminhantes, apenas uma senhora que levara sua Lulu da Pomerânia para passear, mas já arrependida pelo mau tempo. Lisa cumprimentou-o, quase formalmente, e lhe sobreveio um encadeamento de angústias pela união que cumpria seu ciclo e atingia o declínio. Não se protegera do frio, que a fazia tremer-se toda. Mário ofereceu o suéter que combinava com as íris de Lisa; após uma conversa tensa, pediu-lhe um abraço e fez-lhe tardias juras de amor. Ele acendeu um cigarro ‒ sempre recorria a um em situações delicadas. Fumava desde os treze, mesmo tempo em que começou a beber. Ela temia pelas consequências do fim do casamento, essa instituição tão hermética, cuja ruptura causa tantos danos emocionais e deixa sempre uma dúvida, em algum recipiente da mente. Afinal como viveria sem o homem com quem partilhou mais de vinte anos da sua vida? Fora educada para pensar dessa maneira e receava pela ausência da figura masculina... De jovem passou a senhora sem se dar conta da travessia do tempo e das transformações que sofrera, ao longo da vida. Mário se aproveitava da insegurança de Lisa para tentar reverter sua decisão, uma espécie de chantagem que ela refutava, sustentada nos ressentimentos que acumulava há anos. Na verdade, Lisa precisava renascer a partir de um determinado ponto e aquele era o momento adequado. Era como uma queda de braços e ele, julgando-se o mais forte, não aceitava a decisão da mulher, tida como frágil durante toda a vida conjugal a que se submetera a um papel secundário. Ele queria dar a palavra final como uma afirmação de sua masculinidade e tentou, sob todos os argumentos, demovê-la da audácia quanto ao divórcio. Implorou, abraçou-a — ela se esquivou. Diante da inutilidade da súplica, Mário deu-se por rogado e disse: Tudo bem, meu amor, é isso mesmo que você quer? — insinuava-se uma ameaça em sua voz, que de tão familiar, Lisa nem estranhou. 74