Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 76

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 Despedida Íris Cavalcante Fortaleza/CE Divórcio era o único assunto de que Lisa e Mário tratavam nos últimos dias, entre emoções contidas ou extravasadas, papéis, assinaturas, avaliação de bens, reunião com advogados e visitas cartoriais. Eram seis da manhã. Lisa dormira mal e o rosto não trazia o costumeiro viço. Precisavam falar tranquilamente sobre detalhes jurídicos, mas ela não queria discutir sobre isso num ambiente formal ou tumultuado demais, muito menos na presença dos filhos. Veio de Mário a proposta de encontrá-la à beira mar. E havia urgência. Já moravam em casas separadas. Mário arrumava-se na impessoalidade de um flat. Lisa continuava morando no mesmo apartamento do Meireles, que dividiram por mais de vinte anos. Lá criaram os filhos e viveram o que há de melhor e pior no casamento. Foram felizes e infelizes, mas infelizes não precisavam ser para sempre — pensava Lisa. Ela inspirava todo o ar possível aos pulmões, mas nada aliviava a aflição. Lisa tomou o café sem muito ânimo e desceu até a praia em passos tímidos, observando a assimetria entre as casas antigas que sobreviviam em meio aos prédios modernos. Lembrou-se de quantas vezes fizeram esse percurso juntos, tratando de contas a pagar e pequenas implicâncias comuns entre casais. Mário a esperava na Ponte dos Ingleses, um lugar bucólico de onde costumavam contemplar o crepúsculo, em tempos de felicidade. Era um dos prazeres do casal, antes ou após uma caminhada, fosse manhã ou fosse tarde. Num golpe de sorte, também poderiam deslumbrar-se com a dança de imprevistos golfinhos sob a ponte, em estado de abandono, mas a avaria e as pichações nas armações de madeira não inibiam a beleza do cenário. Ele usava um suéter azul sobre a camiseta, prevenindo-se do incomum frio que fazia naquela cidade tropical e demonstrava certa casmurrice na expressão. 73