Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 67

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 Das Wolf Goldfield Casa Branca/SP Adolf – do germânico Adalwolf: “lobo nobre”. Ele mordeu os lábios, abrindo a pequena bolsa de couro e depositando a munição sobre a palma aberta, as balas pesando devido à prata. A orquestra tocando a “Cavalgada das Valquírias” seguia dominando o ar, a agulha da vitrola ainda arranhando o disco colocado pelo falecido Krüeguer para agradar o Führer, sabendo como ele apreciava Wagner... O mesmo Krüeguer do qual restava agora apenas um braço à vista, decepado na altura do cotovelo, o osso branco brilhando sob a lâmpada da sala enquanto se projetava da carne partida. As insígnias da SS na manga mostravam como a alta posição do morto não valera nada contra a calamidade que sofrera; e o sangue escorrendo do membro despertava seus instintos mais ferais... Fechou os olhos e focou sua audição. A besta ainda estava ali dentro, farejando, tentando encontrá-lo. O fato de ter no peito um coração sem bater atrasava sua detecção pelo inimigo. E sabia que aquela oportunidade seria a última para liquidá-la. Abriu os olhos. Percorreu os móveis virados, o estofamento rasgado e os cacos da janela quebrada a alguns passos de distância. O quepe de algum oficial jazia numa poça de sangue ao alcance de sua mão. Não era de Krüeguer – o aroma do sangue era outro. O local havia na verdade se tornado tal confusão de corpos despedaçados que um necromante levaria dias tentando montar cada cadáver corretamente. A melodia de Wagner encontrava o auge no gramofone. Sabia que a música atiçava ainda mais o monstro. Terminou de carregar a Luger e se levantou, desencostando-se da pilastra portando três profundas marcas de garras rompendo o papel de parede. Os grunhidos da fera estavam mais próximos. Contornou a coluna, o caminhar cauteloso evitando os cacos pelo chão. Conter a respiração não era algo difícil a alguém que a fazia de forma tão lenta, a ausência de calor em seu corpo também contribuindo para se camuflar ao ambiente. Além do mais, a besta estava lidando com um russo, diferente dos “arianos puros” agora desmembrados por toda a sala. Diziam serem frios por natureza, até mesmo aqueles que não eram mortos-vivos. Ouvira falar até em experimentos dos nazistas, realizados com os prisioneiros da guerra, tentando comprovar a avantajada resistência natural dos eslavos ao inverno... Dentro em breve, o maldito lobo estaria tão frio quanto seus inimigos no leste. O centro da sala de estar revirada desenhou-se diante de seus sentidos. Havia um corpo decapitado jogado sobre um sofá, o intestino pendendo da pança 64