LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
feito uma cria de cobras vermelhas desenrolando-se para fora do ninho. A julgar
pelo uniforme, devia ser Otto, o gentil dono da casa que lhes oferecera vinho
pouco antes da transformação do principal convidado. Uma taça quebrada podia
ser vista aos pés do móvel, tornando impossível distinguir a bebida do sangue...
Não que no caso dele fizesse alguma diferença.
Teve de conter novamente seus impulsos, ignorando o forte ar de fluído
vital dominando toda a residência. Por pouco não tropeçou num abajur
derrubado, felizmente recuperando a discrição ao se abaixar atrás de outro sofá.
Agora conseguia ouvir os passos do canino, a coisa tendo inteligência o bastante
para também ocultar sua presença. Não queria reconhecer tê-la subestimado...
O Führer não era o mais brilhante dos homens – ao menos era o que a
propaganda pátria martelara insistentemente em sua cabeça. Sabia guardar bem
seu segredo, no entanto; ou o NKVD não teria passado anos tentando descobrir a
verdade sobre os anos de guerra do líder nazista. A respeito de como ocultara a
real natureza de seu ferimento enquanto servia no Somme em 1916, arranhado
na perna por um soldado francês em inexplicável ataque de raiva que, segundo
palavras do próprio Führer aos confidentes mais íntimos, “resistiu ao fogo de
toda uma trincheira”. Um francês que, tendo sua árvore genealógica pesquisada,
revelou-se sétimo filho de um sétimo filho – ironicamente liquidado pelos
mesmos germânicos na Guerra Franco-Prussiana...
Parecia vingança, auxiliada pelas forças além da compreensão humana que
regiam o mundo. E eram essas mesmas forças que haviam trazido aquele russo
até o Führer. Um filho de camponeses ucranianos cujos pais sucumbiram à fome
e que havia sido convertido numa criatura da noite para sobreviver. O vampiro
recrutado pelo grande Stalin, em outra pungente ironia, para integrar a divisão
de místicos e seres sobrenaturais do NKVD, em arriscadas missões atrás das
linhas inimigas...
O guerreiro das trevas que, naquele momento, não só eliminaria o grande
inimigo da União Soviética, mas daria novo passo na eterna guerra entre
vampiros e lobisomens – cujas consequências, nos anos porvir, ele não conseguia
sequer imaginar...
Mas estava totalmente disposto a selar seu destino.
Ergueu-se de trás do sofá, Luger apontada. Do outro lado da sala, a figura
peluda e curvada remetia ao próprio demônio encarnado em forma canina; a
besta meio homem, meio lobo voltando para ele seus olhos vermelhos, dentes
afiados e focinho cujo formato ainda remetia assustadoramente a um nariz
humano. Trapos de uniforme cáqui ainda revestiam parte de seu corpo, uma
suástica pendendo frágil de um de seus braços terminando em garras mortais.
Urrando, o lobo soltou grosso fio de saliva e saltou na direção dele.
A Luger rugiu feito um leão, fera colocando-se em desafio contra a
atacante. Dois, três tiros. Enquanto uma bala passou rente à cabeça do monstro,
errando-a por centímetros, as outras se cravaram em sua carne escura, liberando
jorros de sangue.
Embora a atrasando, a besta não parou.
O vampiro saltou para trás, as garras do oponente varando o ar onde há
pouco estivera, rasgando os restos de uma cortina ao invés de sua pele gélida.
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