LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
meses para recuperar em pleno deste engano cometido pelos recursos humanos,
aprovado pelas chefias e abençoado pela sempiterna contabilidade.
Que os responsáveis não fossem punidos e se limitassem a proferir discursos
prosélitos sobre a necessidade de assumir a responsabilidade com um sorriso nos
lábios era-lhe, de sobremaneira, familiar.
Telefonou à professora especializada em direito do trabalho, que lhe
ministrou uma explicação breve, alegando estar doente – parecera-lhe muito
bem nas fotos que constavam no seu mural da rede social por onde deambulara
em busca de um contacto mais direto. Nesses instantâneos do tempo perdido,
como sempre os apodara em honra de Marcel Proust, vira Ernestina a professora
com três ou quatro colegas, numa fotografia fixando a plena dinâmica de saída
de engate. De qualquer modo, pensou, esse não era o seu mundo.
A realidade de Ernestina era deparar-se com um pouco mais de obstáculos
do que seria normal para uma pessoa da sua etnia e idade. A verdade é que
Ernestina não era bonita, e – pecado capital na sociedade das vaidades! – nem
sequer tentava parecê-lo.
Assim, todas as conversas se abreviavam quando ela chegava, todas as
negociações se transmutavam, não sabia como, em imposições dos outros sobre
si, e até as relações de amizade ou sociais resultavam mais de uma tentativa de
a transformar do que de um vero afeto.
E Ernestina perdia – amigos, empregos, casas, concursos, conhecimentos,
amores - e anos a tentar recuperar tudo aquilo de que os meliantes de bom
parecer em cargos mais poderosos a espoliavam assim que lhe punham os olhos
em cima.
Afinal, pensavam (e ela concordava), dos fracos (corrija-se: dos feios) não
reza a história. E a história de Ernestina, assim nomeada devido a uma avó muito
querida com a qual conhecera o amor incondicional que em vão procurou replicar
a partir das transações afetivas com os seus pais, construía-se a partir dessa luta
entre os bem-parecidos e aquilo que tanto lhe custara a ganhar.
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