LiteraLivre Vl. 3 - nº 13 – Jan/Fev. de 2019
O espelho do dia
Marcos Andrade Alves dos Santos
Canaan/Trairi/CE
Senti uma vez a noite dentro de mim. Com todas as suas estrelas e toda a
sua escuridão, a noite se abrigou dentro de mim. Aquele foi o mistério mais
impressionante que vivi. Nenhum sonho poderia ser comparado com a noite se
abrigando dentro de minhas entranhas e se nutrindo de meu coração. Aquilo
consistia numa experiência de engravidamento. Quem engravida da noite pare o
dia. Então, me preparei para o parto tão logo senti toda a noite dentro de mim.
Como seria belo contemplar a luz nascendo e ,mfffse derramando sobre o
mundo... como era lindo ser eu a divina mãe do dia.
Isto me aconteceu numa volta do tempo. Foi numa brecha que se abriu e
me tragou que vivi estas coisas. Bem no meio das dunas, quando as luzes da
terra clarearam a lua, o fino espelho do dia. Nunca tive notícias do tempo
comendo gente, mas foi justamente nesse acontecimento que fui sequestrado
deste mundo. Eu estava deitado à sombra de um coqueiral quando de repente o
tempo se rasgou e cai de cabeça dentro de uma fresta fininha na realidade. O
vento me empurrou ali, não pude escapar. Eu cai por pouco tempo. Olhando para
cima ouvia meus coqueiros se balançarem, como me desejando uma boa viagem.
Eles certamente me aguardariam para terminar-lhes a história que lhes contava
enquanto me confortavam com suas palhas. Assim eu fui sabendo que não podia
escolher ficar.
Do outro lado me aprumei em cima da areia branquinha em uma grande
nuvem. Sim, até ali achei que as nuvens daquela parte eram feitas de areia.
Meus pés afundavam na maciez. Nus como a noite, eles tentavam encontrar
sentido naquele mistério. Eles viam por meus olhos. Estava escuro e minha vista
não era tão boa para ver naquele lugar misterioso. Somente a areia era visível
por causa de sua brancura. Aquela terra parecia ter sido feita para quem não
possui olhos que veem somente. Nela era preciso enxergar. Para encontrar os
caminhos, eu teria de enxergar com mais sentidos do que somente com aquele
que se pertence aos olhos.
Caminhei na esperança que a nuvem nunca me deixasse cair no chão. A
medida que me distanciava de meu ponto inicial, as estrelas uma a uma foram se
acendendo. Gostei muito da presença daquela luz. Ela facilitaria meu traçado
dentro da noite interminável. Aquela noite era tão grande que eu a sentia
entrando dentro de mim. A noite inundava meu vazio. Ela me engravidava. E eu
sabia qual seria o fruto daquele encontro.
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