Revista LiteraLivre 13ª edição | Page 108

LiteraLivre Vl. 3 - nº 13 – Jan/Fev. de 2019 peraltices e os acontecidos do tempo de criança é necessário que no mínimo sejamos cronista, contista ou romancista, para não dizer epopeico. Não um reles beletrista escrevinhador, contador de historietas, quimeras e pesadelos inverossímeis, pois que, para engendrar histórias fundamentadas em realidades impalpáveis só mesmo um bom ficcionista. Visto que, quando se é criança só se quer viver aquilo que seja enlouquecidamente de criança e, talvez por isso, se queira, quando adulto, viver esse mesmo estado mágico e por isso mesmo tenhamos que destruir esse mundo infantil para tentar tornarmo-nos um adulto melhor, ou menos ruim. Eu mesmo, não fui o suficientemente corajoso para suportar as agruras de uma infância tão vil. Quem dera me imbuísse de um ser onipotente, para quando descrevesse meus culpados atos, fosse-me automaticamente isentado dos prováveis remorsos e a inevitável condenação celeste. Pois, posso não falar de verdades, porém assoberbo-me de uma virtude: não minto para mim mesmo. E tenho ciência de que a maior viagem que fazemos é àquela que se destina ao intestino grosso. Mas e daí! O que escrever da infância?... Sobre o subir nas copas das árvores e de lá cuspir seivas gosmentas de frutas amarelas ou vermelhas na cabeça das pessoas, do amarrar bola de fogo no rabo dos gatos!... — Garçom, você já furou olho de sapo? — Lógico que não, não sou doido. — Sei, mas é só apertar a garganta, tapar a boca dele e puf-puf, enfia-lhe o dedo no olho... E operação em lagartixas, você já fez?... Transplantar coração, fígado, rins?... — Claro que não... Maluquice! — Você nunca brincou de médico e enfermeira? — Não senhor. Eu fui uma criança educada. — Ah é!, que bom né? — Por que o senhor fazia isso? — Para curá-las de suas aflições. — O senhor é doido!... ...Lembro-me também de quando libertava Lucila, a “Louca”, das cordas e correntes que seus pais as atavam ao pé da mesa e saíamos alucinados, correndo para nos escondermos entre os arbustos em devassas brincadeiras. Quando lambuzávamos nos encarnados das amoras e sentíamos tremores em nossos corpos nus, rolando abandonados sobre o chão de folhas mortas. Podres. Interpretando belos personagens, eu o lobo, ela a jaguatirica, com as bocarras rugindo selvagemente! Assim éramos eu e a Lucila. Diziam dela, que era ignóbil, demente, sardenta e feia. No entanto, em sua nobre fealdade levava grande vantagem diante os outros todos. Ela era Louca! Divina! E nunca ridícula. Pra mim, ela era a menina dos olhos de vidro e coxas de seda. Éramos felizes em nossas concupiscências pueris. Ou ainda, quando eu e meus amigos iluminados quebrávamos as vidraças dos casarões, cercados de muros, recobertos de azulejos por dentro e por fora, porque eles, os alienados das mansões não suportavam nem a experiência nem a dor de mudarem de cor... Então gritávamos nas madrugadas, juntos com os cachorros, gatos, mendigos, meretrizes, pederastas e todos os abandonados, e 104