LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
mulheres, essa televisão, essas visitas estão longe do que chamo música de
verdade.
— Daqui a pouco será o chá. Mesmo que você não sinta sabores, faz bem para
nós. Hidrata.
— Mas eu não quero chá. Eu quero ouvir o som do violino, mesmo que seja
desafinado, de um aprendiz teimoso.
— Vai ser difícil realizar esse desejo. Contente-se com o básico. Afinal, você teve
esse AVC severo, não pode sair daqui dançando.
— Eu, não. Nós tivemos. Você está aqui, sentindo minhas dores e os meus
prazeres. Ou não?
— É. O que sinto mesmo é muito medo de me tornar apenas sombra sem corpo.
Sei que você sente dor. Que é que vai esperar? Quase noventa anos vividos
assim assim.
— Nunca vamos nos separar. Mesmo dos meus restos mortais será sombra.
Esteve durante toda a minha vida me ajudando a interrogar, constantemente.
— Mas as respostas para nossas indagações não foram suficientes. Agora seria
interessante indagar como atitude. Temos o gúgol, mas não há movimento no
corpo. Não pode sequer mover os olhos em sim ou não.
— Não precisa ficar lembrando a tragédia, ao ponto de me deixar mais frustrada.
Fale mais do Hélio.
— Ah. O Hélio. Era o típico colonizador cheio de desejos e devaneios. Não
perderia uma só oportunidade de fornicar. Nos desejava avidamente. E nós
também a ele. Mas não nos envolvíamos com o pessoal da música. Lembra?
—Está calor. E agora vem a água de coco. Vamos nos refrescar um pouco.
—Você se ilude. Eu não sinto nada. Não sinto o gosto do coco, da comida, de
nada.
—Então. Sempre há algum motivo para impedir uma relação sexual extasiante.
Nós tínhamos tudo, fama, dinheiro, sucesso – mas não tínhamos oportunidade de
retribuir à investida dele.
—Mas foram todas aquelas adversidades que nos levaram à segurança, na vida
pessoal, amorosa, profissional.
—Uma segurança tamanha que até nossos filhos nos abandonaram aqui nessa
casa de repouso e sequer vêm nos visitar.
—Está vendo. Agora é você que fala das frustrações. Quem se importa com
aqueles homens inúteis?
—Nunca tivemos afeto por eles. Nem afinidade com nenhum dos dois.
Plutocratas…
—Agora vem o remédio. Sinto um pouco de sono e logo começa a telenovela,
tédio puro.
—Que quer assistir?
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