LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
—Mas se ela tivesse outra abordagem, talvez a gente até comprasse.
—Quem ia comprar calcinha, assim, no meio da agência?
—Se ela tivesse vendendo comida, com certeza alguém compraria.
— Ou Natura, né?
Mais de duas semanas se passaram até o nosso próximo encontro.
Ninguém nunca a viu novamente em qualquer outro lugar, ou ouviu falar dela.
Era cedo da manhã e eu estava enchendo minha garrafa de água na copa. Só
tinha mulheres na agência — que estava quase vazia. Dessa vez, quem abriu a
porta foi Clara. Ouvi: “A senhora marcou com alguém?”
Não ouvi a resposta. Senti meu coração gelar. Tentei me esmagar entre a
pilastra e o bebedouro de forma que não fosse possível me ver quando alguém
ultrapassasse a porta. Relutante, Clara não encontrou argumentos para impedir a
entrada da estranha criatura. Ela tirou uma revistinha da Natura e mostrou que
dessa vez não eram calcinhas. “A gente já comprou Natura essa semana, acho
que ninguém vai querer”, contra argumentou a ruiva.
Olhei rapidamente e ela me parecia a mesma estranha criatura da outra
vez. Claro que era. Mesma roupa, mesmo batom rosa descombinando no rosto,
mesma expressão nos olhos pretos. Até o mesmo barulho de plástico velho fez
quando ela tirou a revista, mas não era plástico nem nada, era revista. E fez o
mesmo barulho!
Clara entrou meio rindo, meio apreensiva na copa. Eu também ri. “A culpa
não foi minha. Eu tentei impedir ela de entrar, você viu.” Sim, eu vi. Como
ninguém queria nada da Natura, a estranha mulher da bolsa preta foi-se embora.
Não passava muito desde a hora do almoço. Dois dias depois, eu estava
atravessando a ponte em direção ao Cais de Santa Rita, quando a vi. Mesma
roupa, mesma expressão nos olhos. Eu não tinha dúvidas, era ela. Dei aquele
sorriso que damos quando vemos alguém conhecido na rua, acenando levemente
a cabeça. A estranha retribuiu meu olhar, mas a expressão dela mudou
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