Revista LiteraLivre 12ª edição | Page 124

LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018 O segredo de Desdémona Joaquim Bispo Odivelas, Portugal Quando Iago chegou a casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as novidades: — Já se começa a perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do retrato da minha senhora. Ela está deitada num leito, toda nua, e do alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da cama, há uma velha que tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o conjunto representa a figura mitológica de Dánae, engravidada por Júpiter sob a forma de chuva dourada. — Nua? Excelente! — rejubilou Iago. — Quando volta Desdémona a posar? — De hoje a uma semana. A minha senhora não quer dar azo a que o marido desconfie de nada. «Ah! Mal posso esperar para insinuar indignidades aos ouvidos de Otelo», congeminava Iago. «Se for bastante persuasivo, Desdémona será repudiada e não ficará em posição de ser insensível aos avanços do meu protegido Rodrigo.» Uma semana depois, em casa do general Otelo, este desvenda a Iago alguns dos aspetos militares que o preocupam: — O Turco está cada vez mais atrevido. Veneza está a pontos de perder Chipre e até de deixar de ser senhora do Adriático. O Conselho está a ultimar uma aliança com o Papa e com Filipe II de Espanha. Se esta aliança conseguir reunir uma grande armada, partiremos, a confrontar os asquerosos otomanos, nem que tenhamos de lhes dar batalha nas costas da Grécia. — Pensativo, continuou: — Não temo a batalha, mas constrange-me ficar tanto tempo longe da minha adorada. — Pode ir descansado, general, que sua esposa não se sentirá infeliz, isto é — gaguejava Iago —, mostrará o rosto choroso, mas certamente encontrará distrações, isto é, arranjará maneiras agradáveis de passar o tempo. — Meu bom Iago — lembrava Otelo —, ela ficará bem, com certeza, mas tu irás comigo. Não te esqueças que és o meu alferes. — Sim, claro, ficará bem. Disso não duvido... Ficará até muito bem... — Que queres insinuar? — espevitava-se o general. — Eu? Nada. Falei por falar. E jamais a minha boca se abriria para difamar a senhora da minha esposa — espicaçava Iago. 118