Revista LiteraLivre 12ª edição | Page 125

LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018 — A maneira como falas parece indicar que algo menos honroso se passa. Pela obediência que me deves, dize: o que sabes? — impacientava-se Otelo. — E não temas pela tua esposa, que sempre terá fidalgas a quem assistir. — Se assim me intima — condescendia Iago, enfim no objetivo — só lhe posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado com um velho, a quem se expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz, se por lascívia, se por comércio. — Quê? — esbravejou Otelo, sentindo-se atraiçoado. — Pois ela entrega-se a outrem? Prova o que dizes ou despede-te da vida! — Não mate o mensageiro, senhor! Pergunte antes à sua amada aonde vai ela todas as sextas-feiras. — Sim, sim, manda já chamá-la, que quero esclarecer este caso! — É inútil procurá-la — devolvia Iago —, porque neste momento está ela a ser acariciada pelo olhar de Mestre Ticiano na Scuola Grande de S. Rocco. Parece que o Mestre tem predileção por corpos jovens e manifesta mesmo algum entusiasmo quando os seus pincéis acariciam a superfície da pintura, talvez fantasiando que acaricia a própria pele branca e sedosa de sua esposa. — Pintura? Ticiano? Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho quer de minha mulher? — surpreendia-se o general. — Os velhos, às vezes, são os piores — aproveitava Iago. — Ele está a retratar vossa esposa como Dánae, engravidada pela chuva dourada de Júpiter. Isto não parece muito decoroso. — Oh, com mil raios da procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na praça de S. Marcos, para que Veneza abomine essa devassa! De regresso a casa, Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido: — Muito folgo em te ver vestida — ironizou Otelo. — Tanto quanto sei, ainda há pouco oferecias o corpo à lascívia dos olhares de quem o deve conhecer melhor do que eu. Desdémona quedou-se muda e de rosto perplexo. Olhou em volta à procura da aia, que lhe recusou o olhar. — Explica-me agora — continuou Otelo — por que te expões nua ao olhar de Ticiano! — Nua? — contrapôs Desdémona. — Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo. O meu rosto aparece num corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi, num conjunto de desenhos e gravuras que Mestre Ticiano me deu a escolher, quando contratei a feitura do meu retrato. Só vou a S. Rocco para que ele retrate o meu rosto aplicado a esse corpo que escolhi. Agora, era a vez de Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber: — Afinal, por que bizarria andas nessas andanças? Por quê, esse retrato? 119