LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018
— A maneira como falas parece indicar que algo menos honroso se passa.
Pela obediência que me deves, dize: o que sabes? — impacientava-se Otelo. — E
não temas pela tua esposa, que sempre terá fidalgas a quem assistir.
— Se assim me intima — condescendia Iago, enfim no objetivo — só lhe
posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado com um velho, a quem se
expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz, se por lascívia, se
por comércio.
— Quê? — esbravejou Otelo, sentindo-se atraiçoado. — Pois ela entrega-se
a outrem? Prova o que dizes ou despede-te da vida!
— Não mate o mensageiro, senhor! Pergunte antes à sua amada aonde vai
ela todas as sextas-feiras.
— Sim, sim, manda já chamá-la, que quero esclarecer este caso!
— É inútil procurá-la — devolvia Iago —, porque neste momento está ela a
ser acariciada pelo olhar de Mestre Ticiano na Scuola Grande de S. Rocco. Parece
que o Mestre tem predileção por corpos jovens e manifesta mesmo algum
entusiasmo quando os seus pincéis acariciam a superfície da pintura, talvez
fantasiando que acaricia a própria pele branca e sedosa de sua esposa.
— Pintura? Ticiano? Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho
quer de minha mulher? — surpreendia-se o general.
— Os velhos, às vezes, são os piores — aproveitava Iago. — Ele está a
retratar vossa esposa como Dánae, engravidada pela chuva dourada de Júpiter.
Isto não parece muito decoroso.
— Oh, com mil raios da procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na
praça de S. Marcos, para que Veneza abomine essa devassa!
De regresso a casa, Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido:
— Muito folgo em te ver vestida — ironizou Otelo. — Tanto quanto sei,
ainda há pouco oferecias o corpo à lascívia dos olhares de quem o deve conhecer
melhor do que eu.
Desdémona quedou-se muda e de rosto perplexo. Olhou em volta à procura
da aia, que lhe recusou o olhar.
— Explica-me agora — continuou Otelo — por que te expões nua ao olhar
de Ticiano!
— Nua? — contrapôs Desdémona. — Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo.
O meu rosto aparece num corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi, num
conjunto de desenhos e gravuras que Mestre Ticiano me deu a escolher, quando
contratei a feitura do meu retrato. Só vou a S. Rocco para que ele retrate o meu
rosto aplicado a esse corpo que escolhi.
Agora, era a vez de Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber:
— Afinal, por que bizarria andas nessas andanças? Por quê, esse retrato?
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