Revista LiteraLivre 11ª Edição | Page 41

LiteraLivre Vl. 2 - nº 11 – Set/Out. de 2018 Lucíola, outra das irmãs, oferecia cafezinho aos presentes, alguns dos quais hesitavam em aceitar ou não. D. Iná dirigiu-se logo à cozinha, para oferecer seus préstimos. A conversa prosseguia numa ladainha baixa, porém suficientemente forte para dominar o ambiente, como se todos entoassem uma espécie de reza. Caso fosse um morto mais vivo, Otaviano certamente aguçaria os ouvidos para distinguir o que diziam, já que falavam bastante dele. “Pois é, conheci o Marcondes faz muito tempo. Trabalhamos juntos na companhia de gás”. “Era meu primo, sim, mas meio esquisitão, sabe?”. “Coitada da D. Dolores, sempre aí firme...”. “Não era indivíduo de muitas posses, aliás, nunca foi. É a tal coisa: nem todos nascem pros negócios”. “A casa em Arraial do Cabo era dele ou da mãe?”. “Que triste! O Fluzão perdeu um torcedor..., falando nisso, tem jogo amanhã. Você vai?”. “Estou precisando de um terno novo, vamos ver se dá prá comprar no mês que vem, assim que sair o ordenado”. “O arranjo de flores foi nosso mesmo. Otaviano gostava tanto de flores!”. “Parecia boa pessoa, mas não privei de sua intimidade, era reservado, sacumé?”. “Olha, esses brincos custaram um dinheirão!”. “D. Dolores vai continuar morando aqui?”. “Cadê o Aparício, que não aparece? Tá quase na hora de ir pro cemitério!”. “A cozinha precisa de uma pintura”. “Veja só! Ela tem um vaso igualzinho ao meu!”. “D. Dolores! Chegou o Aparício”. Com a chegada do carro fúnebre, a multidão fora da casa comprimiu-se mais. Abriu-se a porta da sala. Desilusão! Era só o jornaleiro que saía para fumar. Passados mais alguns intermináveis minutos, finalmente o astro do espetáculo apareceu, levado por parentes e conhecidos honrados por essa função. O Sr. Ivo explicava a todos que não fazia parte do seleto grupo em virtude de uma hérnia. Iniciou-se a procissão rumo ao cemitério. “Felizmente, é aqui perto. Este terno está insuportável com esse calor!”. “Já era tempo de a prefeitura endireitar essas ruas, caramba! Outro dia, a patroa quase torceu o pé”. Arrastando-se lentamente, o féretro chegou ao cemitério. Novamente, o grupo de privilegiados retirou o caixão do carro e levou-o até a sepultura, onde o padre Adamastor, que chegou atrasado em razão da cobrança de um casamento, pronunciou as derradeiras palavras que o morto já não ouviria. Baixado o caixão, concluída a cerimônia, dispersou-se a multidão. Lá ficou Otaviano. Descansou em paz, conforme o epitáfio do túmulo, só vindo a ser perturbado por uma chamada da companhia telefônica, que reclamava de uma conta não paga. In Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP 35