Entrevista
GESTÃO
EM SAÚDE
Conversamos com Gonzalo Vecina Neto sobre o assunto
G
onzalo Vecina Neto é autoridade em gestão em saúde, mas prefere
não falar do passado. “Tudo o que eu fui ex não vale a pena. Eu
sou o que sou hoje: professor-assistente da Faculdade de Saúde
Pública da USP e responsável por duas disciplinas do mestrado
da EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo),
da Fundação Getúlio Vargas.
Apesar da resistência em falar sobre o passado, seria uma pena não contar um
pouco da história deste grande personagem da Saúde brasileira: Gonzalo Vecina
Neto. Diretor-Executivo do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da USP (HCFMUSP), ex-Presidente da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), ex-Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, ex-CEO do Hos-
pital Sírio Libanês e por aí segue a lista de “ex” da qual ele nem queria falar...
Convidamos Gonzalo Vecina Neto para falar sobre o momento em que vive a gestão
na saúde brasileira. E claro, o papo foi longo e muito produtivo. Afinal, de eficiência
ele entende.
”No que diz respeito à gestão no Brasil, nós temos dois grandes eventos na década
de 90 que são importantes para compreender o ambiente da saúde. O primeiro é o
fim do imposto inflacionário, em 1994, com o Plano Real. O segundo é a abertura
do Brasil às importações, que criou um novo ambiente tanto para atividades da
indústria quanto para a incorporação de tecnologias de forma mais rápida. Esses
dois momentos confluíram em uma resultante. Por um lado, passamos a precisar
de mais recursos para incorporar tecnologia. Por outro, sem o imposto inflacioná-
rio, precisamos tornar a operação mais eficiente. Essa resultante ainda está sendo
digerida pelo setor da Saúde no Brasil.”
Ainda existe um problema grave de inflação que afeta o setor
da Saúde, não existe?
Sim. A inflação dos pagamentos é da ordem de 16% ao ano enquanto
a correção da remuneração das operadoras o percentual é de 4%.
Então como conseguir sobreviver em um ambiente assim? E como
sobreviver com a tabela do SUS congelada há 10 anos? Existe um con-
junto de perguntas que encaminham para a necessidade do aumento
da eficiência e portanto da melhoria da gestão.
E qual a resposta para essa necessidade
de aumento de eficiência?
Essa resposta está em construção. Até bem pouco tempo nós não
tínhamos uma demanda tão importante por eficiência, isso tem se
tornado mais importante a cada dia. Temos que ser mais eficientes,
tanto no setor público quanto no setor privado.
No setor público é ainda mais complicado
com o problema do desperdício, certo?
Nós temos que conseguir resolver logo esse desperdício. Eventual-
mente pode ter algo de corrupção a ser resolvido também.
E no setor privado?
O setor privado tem resolvido esse desacerto da equação custo/receita
aumentando escala e consumo, na medida em que o modelo predo-
minante de pagamento é o modelo por serviço prestado, o famoso
fee-for-service. Enquanto esse modelo tiver elasticidade de ser usado,
é mais fácil aumentar a quantidade do que tornar o sistema mais
eficiente. Nós estamos nesse ponto de inflexão. A demanda por efi-
ciência é uma demanda por gestão. Quem não perceber isso vai ficar
fora do mercado. No caso do setor privado é fácil, quem não percebe
está fora. No caso do setor publico é um pouco mais complicado,
pois isso implicada em redução de acesso a serviços essenciais.
Quais seriam os pilares de uma boa gestão em saúde?
É preciso responder isso levando em conta o que é público e o que é
privado. A busca de eficiência no setor privado, existindo demanda,
conta com um conjunto de ferramentas como micro-gestão e uso
intensivo de tecnologia da informação.
Diferente é a questão da administração pública, onde existem barrei-
ras mais complicadas a serem ultrapassadas por causa das questões
burocráticas que envolvem o Estado. O estado para gastar precisa
concursar e licitar. Isso cria uma dificuldade quase instransponível de
conseguir ser tão eficiente quanto o setor privado. Por exemplo: um
órgão estatal tem que ter estoque de 90 dias, por causa do ciclo de
reposição imposto pelas licitações. Enquanto isso, uma instituição
privada bem gerida trabalha com estoque de 20 dias. Essa ineficiência
gerada por 70 dias mais de estoque tem que ser resolvida.
A emenda
constitucional
95 que congelou
os gastos sociais
por 20 anos é
desastrosa. A
sociedade precisa
resolver isso, não
sei como, e eu tenho
certeza de que ela
não vai optar pela
solução “estes
não terão, aqueles
terão”. Isso não é
civilizatório, não é
aceitável.
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Gonzalo Vecina Neto
Diretor-Executivo do Instituto Central
do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da USP (HCFMUSP)
E como se pode resolver isso?
Por meio da terceirização da gestão. As parcerias público/privado
são um caminho que vem sendo adotado em boa parte do país. E
eventualmente a utilização de OSCIPs (organização social de inte-
resse público). Esses são caminhos para buscar maior eficiência, mas
que exigem capacidade do Estado de fiscalizar essas terceirizações.
E essa necessidade de licitar e concursar é só brasileira ou
mundial?
É mundial. O modelo inglês está fazendo, já há algum tempo, essa
terceirização de gestão de instrumentos mais complexos para a ini-
ciativa privada. O estado está se recriando lentamente, entregando
o fazer para a iniciativa privada.
Tem outra grande barreira para essa gestão se tornar mais
eficiente?
Tem. O modelo assistencial brasileiro, mais importante até na admi-
nistração privada do que na pública. Hoje o paciente vai direto ao
especialista. Nós temos que reestruturar o modelo de produção de
serviços e ações de saúde nos dois setores para conseguir uma gestão
com melhores resultados.
Ter o esquema de médicos de família, médicos generalistas,
seria uma solução?
Exatamente. No setor público, a estratégia de saúde da família, hoje,
de certa maneira consegue atender 60% da população brasileira, o
que é bastante, mas é uma resposta para atenção básica. Nós ainda
temos muito pouco, somente em algumas cidades mais desenvolvi-
das, como Curitiba, um sistema de acesso a secundário e a terciário,
o que a gente chama de regulação de acesso.
No setor privado, existem algumas experiências de cooperativas
médicas de criar esses novos modelos de acesso mais inteligentes.
Mais ainda são muito poucos.
O envelhecimento populacional só complica a situação.
O envelhecimento populacional é uma bomba colocada nesse con-
junto de discussões, só agrava a necessidade de mais eficiência e de
melhor gestão.
Que país se destaca por um bom modelo de gestão em saúde?
O modelo público que nós usamos, que é muito exitoso, é o modelo
inglês, do NHS (National Health Service). Mas a Espanha também
tem um modelo para o qual podemos olhar, assim como o Canadá.
E em relação a modelos privados?
No que diz respeito ao privado, existem algumas empresas, particu-
larmente nos Estados Unidos, como a Kaiser Permanente, que tem
bons exemplos de como fazer gestão de saúde populacional. Isso é
muito recente para nossas operadoras.
No Brasil, algum destaque em gestão em saúde?
Existem alguns. Eu destaco a Unimed de Belo Horizonte, e a Prevent
Senior, em São Paulo. Na administração pública nós temos alguns
exemplos bons, o melhor deles em Curitiba. Tem também Belo Hori-
zonte e Fortaleza. Mas ainda não dá para falar que é uma onda, são
ainda projetos isolados.
O que poderia transformar a gestão no Brasil?
Existe um conjunto de ações que precisariam ser desencadeadas. A
demanda por eficiência é um desses elementos, o cidadão tem que
entender essa necessidade de mais eficiência e mais regulação de
acesso a serviços. E o Judiciário precisa se enquadrar nisso.
Por que o Judiciário?
No ano passado, segundo estimativas, o setor público aplicou cerca
de 240 bilhões de reais em saúde, sendo 7 bilhões só em judicia-
lização. O setor privado gastou em torno de 175 bilhões de reais,
sendo 3 bilhões em judicialização. Isso é fruto de um ativismo jurí-
dico e de inépcia do sistema. Na Inglaterra o nível de judicialização
é muito baixo, porque o Judiciário acredita no NICE (Nation Institute
for Health and Care Excellence), o que não acontece no Brasil. Isso
precisa ser atacado para aumentar a eficiência nos dois setores.
A questão de financiamento também é crucial, certo?
O setor privado consome hoje algo como R$3.500,00 per capita/
ano. O público está em R$1.200,00. Isso representa um problema
de financiamento. Comparando com Uruguai, Argentina, Chile, nós
gastamos menos per capita, o gasto público é menor do que nesses
países. É logico que resolver isso num momento de crise é compli-
cado, mas não adianta colocar essa pauta de lado.
E essa discussão do governo sobre relaxar o controle sobre o
orçamento, a desvinculação orçamentaria?
Do ponto de vista gerencial, a vinculação orçamentária engessa o ges-
tor público. Mas sem isso não existe garantia de que os recursos de
que a saúde necessita sejam aplicados na saúde. Certamente haverá
um grande desvio de recursos para áreas mais nobres do ponto de
vista de produção, como infraestrutura. É isso que a sociedade quer?
A emenda constitucional 95 que congelou os gastos sociais por 20
anos é desastrosa. A sociedade precisa resolver isso, não sei como,
e eu tenho certeza de que ela não vai optar pela solução “estes não
terão, aqueles terão”. Isso não é civilizatório, não é aceitável. É uma
decisão que vai ter que ser tomada, se os problemas de financia-
mento da saúde pública continuarem como estão.
E o senhor é um otimista?
Os indicadores de resultados em saúde são bons: nós estamos tendo
uma menor mortalidade infantil, uma maior expectativa de vida
ao nascer, o Brasil é o terceiro país que mais cresceu em sobrevida
de pessoas com mais de 60 anos do mundo na última década. Mas
falando de gastos e receita, nós temos que fazer uma conta, temos
que deixar de gastar no que não devemos gastar e gastar no que
devemos, fazer uma realocação de gastos e aumentar a eficiência
na utilização desses recursos. Eu sou um otimista, temeroso neste
momento, mas sou um otimista.