Revista de Medicina Desportiva Informa Maio 2019 | Page 14
e antecedentes familiares de cirrose
hepática e diabetes mellitus no pai.
Com antecedentes desportivos refere
uma fratura de stress do 2.º meta-
tarso esquerdo e várias lesões
musculares. Medicado habitual-
mente com suplementação de ácido
fólico, vitaminas do complexo B e
ferro endovenoso, medicação que
cumpria de forma regular, principal-
mente em períodos prévios a
estágios de altitude.
Após uma avaliação analítica de
rotina o atleta apresentava hemo-
blobina 16,8 g/dL, volume globular
médio 88,3fL, ferro sérico 155 ug/
dL, transferrina 233 mg/dL, ferritina
1402,2 ug/L, velocidade de sedimen-
tação 4 mm/h, sem alterações da
enzimologia hepática e da função
renal. Não apresentava queixas
sistémicas associadas ou alterações
da condição física, mantendo o seu
programa de treino e competição
sem reportar baixar de performance.
O exame objetivo não apresentava
alterações. Foi encaminhado à con-
sulta de Medicina Interna do Centro
Hospitalar Lisboa Ocidental (CHLO)
por hiperferritinémia.
No CHLO repetiu a avaliação
analítica que confirmou a hiperfer-
ritinémia, apresentando hemoglo-
bina de 15,7 g/dL, sem alterações
do leucograma, plaquetas 131000/
uL, ferro sérico 95 ug/dL, ferritina
938 ng/mL, capacidade total de fixa-
ção do ferro 239 ug/dL, saturação de
transferrina 40%, folatos e vitamina
B12 dentro da normalidade, hemo-
globina glicada 6,5%, creatinina 0,81
mg/dL, colesterol total 261 mg/dL,
colesterol HDL 56 mg/dL, colesterol
LDL 178 mg/dL, triglicerídeos 136
mg/dL, enzimologia hepática sem
alterações. Realizou ecocardiograma
transtorácico que não revelou alte-
rações da função diastólica: “ventrí-
culo esquerdo com ligeira hipertro-
fia concêntrica das paredes e boa
função sistólica global, dilatação
biauricular major, compatível com
condicionamento físico atual”.
Perante a hiperferritinémia isolada
era importante considerar se estaria
associada apenas à administração
de ferro endovenoso ou se pode-
ríamos estar perante um caso de
hemocromatose hereditária (dada a
história familiar de doença hepá-
tica e pancreática - pai com cirrose
hepática e diabetes mellitus) e,
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ainda, avaliar se o doente apresen-
tava sobrecarga de ferro com lesão
de órgão.
Deste modo, foi quantificada a
administração de ferro: o doente
teria feito até à data 6 injeções/ano
com sódio ferrigluconato (62.5mg de
ferro em cada 5ml) durante 11 anos,
correspondente a 375 mg/ano de
ferro, um total de 4215mg de ferro.
Este é um valor considerável, mas
ainda no limite para causar hemo-
cromatose secundária, que acontece
a partir de valores cumulativos de
ferro na ordem dos 5000mg, o que
corresponde a 20 transfusões de
concentrado eritrocitário. 1,4,5
Prosseguiu-se com o estudo gené-
tico de hemocromatose hereditária,
sendo detetada a mutação p.H63D
em heterozigotia. Não se detetou a
mutação p.C282Y.
Para pesquisa de sobrecarga de
ferro com lesão de órgão realizou
ressonância magnética nuclear
hepática: ”O fígado revela morfologia
globosa, com critérios de hepatomegália.
Verificamos através de protocolo…com
medições no lobo direito hepático e nos
músculos para-espinhais, de critérios de
sobrecarga de ferro, nas sequências em
T1 sobretudo em fase, a existência de
sinal hepático relativamente idêntico ao
dos músculos para-espinhais, aspeto que
se associa a redução dos sinais também
a nível da medula óssea lombar, sobre-
tudo no estudo fora de fase; verifica-se
que em T2 existe praticamente isoin-
tensidade do fígado em relação aos
músculos para-espinhais. Na sequência
eco-gradiente/T2* há redução de sinal
hepático por comparação às estruturas
musculares, em conformidade com crité-
rios de hemocromatose (Figura 1). Existe
também redução do sinal do parênquima
esplénico em relação com depósito/sobre-
carga de ferro...”.
A quantificação dos depósitos de
ferro calculada na sequência de T1
foi bastante elevada, 300 umol/g,
sendo o normal 36 umol/g. Realizou
também ressonância magnética
nuclear cardíaca, que não revelou
presença significativa de ferro mio-
cárdico.
Após os resultados dos exames
complementares, concluímos tratar-
-se de um caso de hemocromatose
secundária, consequente à suple-
mentação de ferro endovenoso asso-
ciada a doente portador de mutação
H63D em heterozigotia.
O doente foi orientado para o Cen-
tro de Alto Rendimento para realiza-
ção de prova de esforço para estudo
de arritmias induzidas pelo esforço.
Foi orientado para consultas de
imunohemoterapia para realização
de flebotomias e genética para ras-
treio do filho. Atualmente mantém
seguimento em consulta de imu-
nohemoterapia, tendo já realizado
múltiplas flebotomias. Mantém-se
assintomático e retomou os treinos
de alta intensidade, sem intercorrên-
cias. Mantém suspensa a suplemen-
tação com ferro oral ou endovenoso
e no último estudo analítico, após 15
Figura 1 – Ressonância magnética nuclear hepática - sequência eco-gradiente/T2* com
redução de sinal hepático por comparação às estruturas musculares para-espinhais