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Um dia, devia já ser mais velha na altura, estamos sozinhos, ele e eu. O meu pai está a fritar carne. Quer saber se eu a quero bem passada, mal passada... Apercebo-me que quer explicar-me a diferença entre cozinhado e cru e, com a ajuda do aquecedor, entre quente e frio. Compreendo quente e frio, mas não cozinhado e cru. Aquilo prolonga-se. Por fim ele aborrece-se e frita dois pedaços de carne da mesma maneira.
De outra vez, já com outra idade, estamos a ver televisão. Um dos personagens chama-se Laborie, como nós, mas com ue ". O meu pai tenta explicar-me com pedaços de papel a diferença entre o " t " do nosso nome e o " e " do personagem. Para mim é incompreensível, e repito sem parar:
- É tifiti. Étifiti ",. Ele não percebe o que eu oralizo e, exaustos ambos, deixamos cair o assunto até que chegue a minha mãe. Aí ele pergunta-lhe o que é que eu queria dizer e ela larga à gargalhada:
- " É difícil ".
Ora isto era tão " tifiti " para mim como para ele, e ele suportava mal a situação. No fundo, eu também. Na infância, um surdo é ainda mais vulnerável. É-se ainda mais sensível do que qualquer outra criança. Sei que muitas vezes saltei da frieza para o riso.
Frieza quando por exemplo à mesa ninguém se preocupa em comunicar comigo. Bato na mesa violentamente. Quero " falar ". Quero perceber o que estão a dizer. Estou saturada de ser prisioneira daquele silêncio que ninguém se dá ao trabalho de romper. Eu esforço-me todo o tempo, eles nem por isso. Os que podem ouvir não se esforçam o suficiente. E guardo-lhes rancor por esse motivo.
Recordo-me de uma pergunta na minha cabeça: como é que eles se entendem quando estão de costas voltadas uns para os
outros? É " tifiti " para mim imaginar que a comunicação é possível mesmo sem se estar frente a frente. Eu só assim co ó sou capaz de chamar alguém se lhe der um puxão. Uma manga, a borda da saia ou das calças. Ao fazer isso estou dizendo: " Olha para mim, mostra-me o teu rosto, os teus olhos, para eu”
VER. Se não vir, estou perdida. Preciso da expressão dos olhos, do movimento dos lábios. Também chamo com a minha voz. Chamo o meu pai quando ele está a tocar piano. Grito bem alto " papá, papá " para que ele olhe para mim. Mas para lhe dizer o quê? Nem sei.