O voo da Gaivota 1 | Page 21

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pássaro, como o canto de um pássaro, é impossível agarrá-lo. É uma música que se eleva em altura, não no sentido da terra. Os sons no ar devem ser agudos, os sons na terra devem ser graves. E a música é um arco-íris de cores vibrantes. Adoro música africana. O tam-tam é uma música que vem da terra. Ouço-a com os pés, com a cabeça, com o corpo inteiro.
Quanto à música clássica, tenho dificuldade. Paira muito alto, no ar. Não consigo alcançá-la. A música é uma linguagem para lá das palavras, universal. É a arte mais bela que existe, consegue fazer vibrar fisicamente o corpo humano. É difícil reconhecer a diferença entre a viola e o violino. Se eu viesse de outro planeta e encontrasse todos os homens a falar de forma diferente, estou certa de que conseguiria compreendê-los ao entender os seus sentimentos. Mas o campo da música é muito vasto, imenso. Por vezes perco-me nele. É o que acontece no interior do meu corpo. Há notas que se põem a dançar. Como as chamas numa lareira. O ritmo do fogo, pequeno, grande, pequeno, mais rápido, mais lento... Vibração, emoção, cores em ritmo mágico.
No que se diz respeito ao canto, constitui um mistério. Uma única vez se rompeu esse mistério. Não sei quando nem que idade teria. Mas está ainda presente. Estou a ver a Callas na televisão. Os meus pais olham e eu estou sentada com eles frente À tela. Vejo uma mulher forte, que aparenta um carácter forte. De súbito surge um grande plano e é como se eu tivesse ouvido a sua voz. Olhando-a intensamente, compreendo a voz que deve ter. Imagino uma canção não muito alegre, mas vejo bem que a voz vem do interior, de longe, que aquela mulher canta com o ventre muito alegre, com as entranhas.
Causa-me um efeito estranhíssimo. Terei realmente ouvido a sua voz? Não faço a menor ideia. Mas não há dúvida de que me emocionou. Foi a única vez que isto me aconteceu. Maria Callas comoveu-me. Foi a única vez na minha vida em que ouvi, em que imaginei uma voz a cantar. Os outros cantores não me dizem nada. Quando olho para eles num programa de televisão, sinto muita violência, muitas imagens que se sucedem, não se percebe nada. Não consigo sequer imaginar a música que paira acima deles, tudo aparenta ser rápido. Mas há certos cantores, como Carole Laure, Jacques Brel, Jean-Jacques Goldman, cujas palavras me emocionam. E o Michael Jackson! Quando o vejo dançar acho que o seu corpo é elétrico, o ritmo da música é elétrico, associo-o imagens elétricas, sinto-o elétrico.