O voo da Gaivota 1 | Page 20

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Quando soube que eu era surda, interrogou-se de imediato como é que eu ia conseguir ouvir música. Ao levar-me a concertos, bem pequena ainda, o seu desejo era transmitir-me a sua paixão ou então " recusava " admitir que eu era surda.
Quanto a mim, achava aquilo formidável. E ainda é, o fato de o meu pai não ter erguido obstáculos entre mim e a música. Eu sentia-me feliz por estar com ele. E creio que me apercebia profundamente da música; não com os meus ouvidos, mas com o meu corpo. O meu pai acalentou por muito tempo a esperança de me ver acordar de um longo sono. Como a Bela Adormecida. E estava convencido de que a música operaria essa magia.
Uma vez que eu vibrava com a música, e que ele era louco por música, clássica, jazz, Beatles, o meu pai levava-me aos concertos e eu cresci achando que podia partilhar tudo com ele.
Uma noite o meu tio Fifou, que era músico, estava tocando viola. Eu olhava para ele, é uma imagem que ficou marcada nitidamente na minha memória. Toda a família escuta. Ele deseja partilhar comigo a viola. Diz-me que finque os dentes no braço da viola. Eu mordo e ele põe-se a tocar. Fico ali horas. Sinto no meu corpo todas as vibrações, as notas agudas e as notas graves. A música entra no meu corpo, instala-se, põe-se a tocar dentro de mim. A minha mãe olha-me maravilhada. Tenta fazer a mesma coisa mas não aguenta. Diz que lhe ressoa na cabeça.
Ainda hoje há a marca dos meus dentes na viola do meu tio. Tive muita sorte, na minha infância, por ter acesso à música. Há muitos pais de crianças surdas que acham que não vale a pena e que privam os filhos do contato com a música. E algumas crianças surdas não querem saber da música para nada. Quanto a mim, adoro. Sinto-lhe as vibrações. E o espetáculo de um concerto também exerce em mim a sua influência. Os efeitos de luz, o ambiente, a sala cheia, tudo isso são vibrações.
Sinto que estamos todos juntos para um mesmo fim. O saxofone que brilha com reflexos dourados é maravilhoso. Os trompetistas que enchem de ar as bochechas. Os baixos. Sinto com os pés, com o corpo todo se estiver estendida no chão. E imagino o barulho, sempre o imaginei. É através do meu corpo que ouço a música. Com os pés nus no chão, colados às vibrações, é assim que a vejo, a cores. O piano tem cores, a viola eléctrica, os tambores. E a bateria. Vibro com todos eles. Quanto ao violino, não consigo alcançá-lo. Não sou capaz de o ouvir com os pés. O violino eleva-se, deve ser agudo como um