O voo da Gaivota 1 | Page 19

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que não é verdade . Que é brincadeira . Mas amo o ventre da minha mãe e o som da vida que há lá dentro .
Também amo o ventre do meu pai , quando à noite conversa com os amigos ou com a minha mãe . Estou cansada , estiraço-me ao lado dele com a cabeça encostada à barriga e ouço a sua voz . A voz dele passa pela barriga e eu sinto as vibrações .
O que me acalma , me dá segurança , é como uma canção de embalar e eu adormeço com aquelas vibrações ., serenamente .
Percepção física de conflito , diferente : a minha mãe dá-me um açoite . Lembro-me bem desse açoite . Na altura devo ter compreendido o motivo daquele açoite , mas agora já não me lembro . A minha mãe sai com dores nas mãos e eu fico com dores nas nádegas . Choramos ambas . Os meus pais nunca me batiam , imagino pois que ela devia estar realmente zangada , mas ignoro qual a razão . É a única recordação que tenho de ter sofrido um castigo .
De resto , as relações conflituosas com a minha mãe são complicadas . Por exemplo , eu não quero comer uma coisa qualquer . A minha mãe diz :
" Tens que acabar o que está no prato .", Mas eu não quero . Então ela faz o jogo do avião com a colherzinha .
Uma colher para o papá , uma para a avó ... eu percebo muito bem aquela história ... e uma para mim . Abro a boca e engulo . Mas por vezes acontece que não quero comer . Não quero mesmo . Enfureço-me com a minha mãe . A gaivota fica zangada . E quando me farto levanto-me da mesa . Todos julgam que estou a brincar , mas não estou . Faço a mala , meto-lhe dentro as bonecas , estou de facto furiosa . Desejo ir-me embora .
A mala é uma mala de boneca . Não lhe meto dentro o meu casaco , meto os casacos das bonecas juntamente com elas . Não sei porquê . Talvez as bonecas sejam eu própria e eu queira fazer crer que sou eu quem parte . Saio para a rua . A minha mãe entra em pânico , vai atrás de mim . Faço isto quando estou realmente zangada ou se tivemos uma briga . Sou uma pessoa , não posso obedecer sempre . É preciso estar sempre de acordo com a minha mãe , mas eu quero ser independente . Emmanuelle é diferente . Somos diferentes uma da outra .
Com o meu pai brinco , divertimo-nos , rimos muito , mas será que comunicamos realmente ? Não sei . Ele também não . E isso digo-lhe .