O voo da Gaivota 1 | Page 18

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me lembro de ter ouvido nada através dele. Talvez alguns ruídos? Mas ruídos que ouço ainda agora, como a vibração dos carros passando na rua, a vibração da música: com o aparelho tornam-se insuportavelmente fortes.
Mas barulhos de crianças? Não. Os brinquedos são mudos. Cansavam-me aqueles sons tão intensos, sons sem qualquer significado, que não conduziam a nada. Tirava o aparelho para dormir, o barulho angustiava-me. Um ruído alto sem nome, sem qualquer ligação, deixava-me nervosa. A mãe disse:
- " O ortofonista disse para não nos preocuparmos, que tu havias de vir a falar.
Deram-nos esperanças: com a reeducação e os aparelhos, vais acabar por ser uma " ouvinte ". Com atraso, evidentemente, mas hás-de conseguir. Tínhamos esperança também que um dia acabasses por ouvir de facto, mas isso não tinha a menor lógica. Seria como um golpe de magia. Custava-nos tanto aceitar que tivesses nascido num mundo diferente do nosso."
4. Ventre e Música
Foi a partir do uso da aparelhagem, mas ignoro quando, que comecei a fazer a distinção entre as pessoas que ouvem e os surdos. Simplesmente porque os que ouvem não usavam aparelho. Havia os que os usavam e os outros. Era tão simples como muro e eu ficava triste. Via a tristeza do meu pai e também a da minha mãe. Sentia verdadeiramente a tristeza e queria que os meus pais sorrissem, que fossem felizes e eu queria dar-lhes essa felicidade. Mas não sabia como agir. Dizia para comigo: O que é que eu tenho? Por que é que eles estão tristes por minha causa?" Nessa altura ainda não tinha compreendido que era surda. Somente que existia uma diferença.
A primeira recordação? Não há nem primeira nem ótima recordação de infância na minha desarrumação interior. Sensações. Olhos e um corpo para registrar a sensação.
Recordo-me do ventre. A minha mãe está grávida da minha irmã, sinto intensamente as vibrações. Apercebo-me de que há ali qualquer coisa. Com a cara enterrada no ventre da minha mãe, " escuto " a vida. É-me difícil aceitar que haja um bebê no ventre da minha mãe. Acho que é impossível. Vejo uma pessoa e existe outra dentro dela? Digo