O voo da Gaivota 1 | Page 15

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feitos de sensações. A onda que rola na praia, calma e suave, dá uma sensação de serenidade, de tranquilidade. A que se ergue e galopa encapelada representa a ira. O vento são os meus cabelos soltos no ar, a frescura, uma doce sensação na minha pele.
A luz é importante. Gosto do dia, não da noite.
Durmo num sofá na sala do pequeno apartamento dos meus pais. O meu pai estuda medicina, a minha mãe é professora. Interrompeu os estudos para me educar. Não somos ricos, a casa é pequena. Noções que eu não tinha ainda, uma vez que a organização da sociedade, do mundo daqueles que ouvem, me era totalmente estranha. De noite durmo Sozinha no sofá. Ainda hoje o vejo, um canapé amarelo e cor de laranja. Vejo uma mesa em madeira castanha. Vejo a mesa da casa de jantar, branca com os pés em cavalete. Há sempre uma ligação entre as cores e os sons que eu imagino. Não posso dizer se o som que imagino é azul ou verde ou vermelho, mas as cores e a luz são suportes da imaginação do ruído, da percepção de cada situação. Com os meus olhos, à luz, posso controlar tudo. Negro é sinônimo de incomunicabilidade, portanto de silêncio. Ausência de luz: pânico. Mais tarde aprendi a apagar a luz antes de adormecer.
Tenho o flash de uma recordação da escuridão da noite. Estou na sala, estendida na cama e vejo através da janela a sombra dos faróis na parede. Aquilo assusta-me, aquelas luzes que aparecem e desaparecem. Ainda tenho essa imagem na cabeça. Entre a sala e o quarto dos meus pais não há divisória, é uma grande divisão sem porta. Há um cadeirão e uma cama e o grande sofá cheio de almofadas onde eu durmo. Vejo-me criança, mas não sei que idade teria. Estou com medo. Sempre com medo, da noite, dos faróis dos carros, daquelas sombras na parede que aparecem e desaparecem.
Por vezes os meus pais explicam-me que vão sair. Mas compreenderia eu realmente o que significava aquela história de sair? Para mim eles desapareciam, abandonavam-me. Os meus pais saíam e voltavam. Mas iriam regressar? Quando? Eu não tinha a noção do quando. Não tinha palavras para o dizer, não tinha língua, não podia exprimir a minha angústia. Era horrível.
Creio que adivinhava, por um certo nervosismo no seu comportamento, que eles iam " desaparecer ",, mas a partida deles era sempre uma surpresa para mim, porque me apercebia da sua ausência durante a noite. Davam-me de jantar, metiam-me na cama, esperavam que eu adormecesse e quando os meus pais supunham que eu dormia profundamente, achavam que podiam sair e eu sem saber de nada. Acordava sozinha. Talvez acordasse precisamente por esse motivo. E tinha medo dos faróis como de fantasmas na parede. Eu não podia dizer nem explicar aquele medo. Os meus pais deviam julgar que nada conseguiria acordar-me, uma vez que eu era surda!