O Tijolo- 1º bimestre 2018 O Tijolo- 1º bimestre 2018 | Page 12

Por Taiza Consul da Silva, baseado no conto de Edgar Allan Poe, “O coração delator ” Intolerância ou loucura? Eu gostava do velho, ele nunca havia me feito nenhum mal, não havia me insultado e até compartilhava o final de suas bitucas de cigarro comigo quando nosso patrão não estava prestando atenção. Sem sombra de dúvidas era aquele olho! Um de seus olhos parecia o de um abutre, azul claríssimo coberto por um véu, em certos momentos enquanto o velho conversava comigo, seu olho tremia levemente, toda vez que isso acon- tecia eu sentia meu sangue gelar, parecia que ele estava lendo minha alma e prestes a expor todos os meus segredos mais sombrios. Era uma sensação tão desagradável que me acometia que um dia eu, embalado pelo medo, tomei uma decisão definitiva de dar cabo na vida do velho e me livrar do olho maldito para sempre. Devia ter visto! Foi muito bem planejado, eu havia pensado em cada detalhe, medido cada passo. Nada po- deria dar errado. Três semanas antes do acontecido, eu fui em uma loja de materiais de construção e comprei um grande pacote de gesso e algumas espátulas de pedreiro. Horas antes de realmente botar o plano em ação, eu escondi meus equipamentos entre os ramos de um arbusto lateral e quase escondido da praça principal da cidade, o Largo da Memória. Só faltava trazer o velho para a praça naquela noite. Convencê-lo a vir comigo não havia sido nada difícil, no dia seguinte haveria o desfile de bonecos de cera da cidade, famoso na região e querido por toda a cidade, partiria do Largo da Memória e iria até o Cemitério da Reconquista onde todos os bonecos seriam queimados em tributo aos soldados vencedores de uma guerra que há muito tempo havia sido travada nos arredores da cidade. No dia anterior ao desfile, os organizadores do festejo deixariam todas as estátuas na praça principal sem segurança nenhuma. Eles diziam que era para facilitar o trabalho dos montadores dos carros alegóricos e que acreditavam que nenhum cidadão tentaria fazer qualquer estrago às estátuas… Há! E o que eu estava fazendo? Posso dizer por experiência própria que confiar em outras pessoas era não só um sinal de burrice mas também de fraqueza. Mas enfim, voltando ao velho, eu o havia convidado para apreciar a estátua que estava fixada no Largo da Memória e de quebra dar uma espiada no show do dia seguinte. Era uma noite fria, andávamos a passos largos e rápidos, a barra mal feita da calça dele roçando contra a neve estava me irritando profundamente. Meus dedos, dentro dos bolsos do sobretudo escuro que vestia, se divi- diam entre apertar o cabo da faca de cozinha que trazia comigo e o isqueiro de prata que eu havia herdado do meu avô e uma pequena garrafa de aguardente que havia roubado de meu patrão. Finalmente após percorrer o caminho de ruelas sujas e apertadas chegamos ao Largo da Memória, desviamos de alguns bonecos de cera protegidos do frio por mantas de algodão e paramos sem fôlego no centro da praça, a estátua de bronze do Cavaleiro de Palafitas era de fato muito interessante. Era a imagem de um homem armado até os dentes e com uma expressão de pura arrogância em uma posição heroica montado em um cavalo que pisoteava as ca- beças degoladas e aterro- risadas de seus inimigos. Mórbido. E ao mesmo tempo tão belo, logo aquele lugar presenciaria o meu renascimento. Logo eu não pre- cisaria mais ter medo. Logo o olho de abutre seria destruído. Com esse pensamento em mente sorri e o velho, um pobre coitado que estava no meu caminho, sorriu também, virou as costas para mim e passou a admirar o Cavaleiro mais de perto. Eu esperei impaciente mais alguns minutos para que voltasse a falar comigo. Quando virou para me olhar novamente, eu quase me senti uma pessoa ruim, ele estava verdadeiramente alegre. Seria uma pena estragar sua felicidade mas tinha que ser feito. Impulsivamente o puxei para um abraço, ele surpreso retribuiu hesitantemente,