PDL – PROJETO DEMOCRATIZAÇÃO DA LEITURA
gaveta em casa , junto com a pistola do exército que , toda noite , quando pensava que eu estava dormindo , tirava e examinava como se ela possuísse todas as respostas , ou pelo menos as que precisava .
Durante anos eu retornaria à porta daquele bazar para espiá-la em segredo . Nunca tive coragem de entrar , nem de falar com ela quando a via sair e afastar-se Rambla abaixo , rumo à vida que eu tinha imaginado para ela , com uma família que a fazia feliz e um filho que merecia seu afeto e o contato de sua pele mais do que eu . Meu pai nunca ficou sabendo que de vez em quando eu escapava para ir vê-la e que havia ocasiões em que a seguia bem de perto , sempre prestes a pegar sua mão e caminhar a seu lado , sempre fugindo no último momento . Em meu mundo , as grandes esperanças viviam apenas nas páginas dos livros .
A boa sorte que meu pai tanto desejava nunca chegou . A única cortesia que a vida se dignou a ter com ele foi não fazê-lo esperar demais . Uma noite , quando chegávamos às portas do jornal para começar o plantão , três pistoleiros saíram das sombras e crivaram-no de balas diante de meus olhos . Lembro do cheiro de enxofre e do halo esfumaçado dos buracos que as balas tinham abrasado em seu casaco . Um dos pistoleiros estava prestes a dar o tiro de misericórdia em sua cabeça quando me atirei sobre meu pai , e o outro assassino o deteve . Lembro dos olhos do pistoleiro sobre os meus , ainda decidindo se deveria me matar ou não . De repente , afastaram-se apressados e desapareceram pelas vielas espremidas entre as fábricas de Pueblo Nuevo .
Naquela noite , os assassinos deixaram meu pai sangrando em meus braços e me deixaram sozinho no mundo . Passei quase duas semanas dormindo nas oficinas da gráfica do jornal , escondido entre máquinas de linotipo que pareciam gigantescas aranhas de aço , tentando abafar aquele silvo enlouquecedor que perfurava meus tímpanos ao anoitecer . Quando me descobriram , ainda tinha as mãos e a roupa manchadas de sangue seco . No começo , ninguém me reconheceu , pois não falei durante quase uma semana e quando o fiz foi para gritar o nome de meu pai até perder a voz . Quando perguntaram por minha mãe , disse que tinha morrido e que não tinha ninguém no mundo . Minha história chegou aos ouvidos de Pedro Vidal , a grande estrela do jornal e amigo íntimo do editor que , a seu pedido , ordenou que me dessem um emprego de contínuo na casa e que permitissem que eu ocupasse as modestas dependências do porteiro no porão , até nova ordem .
Aqueles eram anos em que o sangue e a violência nas Ruas de Barcelona começavam a se transformar no pão de cada dia . Dias de panfletos e bombas que deixavam pedaços de corpos tremendo e fumegando nas Ruas do Raval , de bandos de