O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 40

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA figuras negras que percorriam a noite derramando sangue, de procissões e desfiles de santos e generais que cheiravam à morte e à enganação, de discursos incendiários em que todos mentiam e todos tinham razão. A raiva e o ódio, que anos mais tarde levariam uns e outros a assassinarem uns aos outros em nome de palavras de ordem e trapos coloridos, já se faziam sentir no ar envenenado. A névoa perpétua das fábricas arrastava- se sobre a cidade e mascarava suas avenidas de pedra sulcadas por bondes e carruagens. A noite pertencia aos lampiões de gás, às sombras das vielas interrompidas pelo lampejo dos disparos e pelo traçado azul da pólvora queimada. Eram anos em que se crescia depressa, e quando a infância se despedia, muitos já tinham um olhar de velho. Sem outra família salvo aquela tenebrosa Barcelona, o jornal transformou-se em meu refúgio e meu mundo até que, aos 14 anos, meu salário permitiu que eu alugasse aquele quarto na pensão de dona Carmen. Estava vivendo ali há apenas uma semana, quando certo dia a zeladora chegou ao meu quarto avisando que um cavalheiro estava perguntando por mim na porta. No patamar da escada encontrei um homem vestido de cinza, de olhar cinza e voz cinza que perguntou se eu era David Martín e, quando confirmei, estendeu um pacote enrolado em papel pardo e perdeu-se escadas abaixo deixando sua ausência cinzenta empesteando aquele mundo de misérias ao qual tinha me incorporado. Levei o pacote para meu quarto e fechei a porta. Ninguém, à exceção de duas ou três pessoas no jornal, sabia que eu morava ali. Desfiz o embrulho, intrigado. Era o primeiro pacote que recebia em minha vida. Seu conteúdo era um estojo de madeira velha, cujo aspecto me pareceu vagamente familiar. Depositei sobre a cama e abri. Dentro estava a velha pistola de meu pai, a arma que o exército lhe deu e com a qual tinha retornado das Filipinas e construído para si mesmo uma morte prematura e miserável. Junto à arma havia uma caixinha de papelão contendo balas. Peguei a pistola nas mãos e senti seu peso. Cheirava a pólvora e óleo. Fiquei me perguntando quantos homens meu pai tinha matado com aquela arma, com a qual seguramente daria fim à própria vida se não o tivessem antecipado. Devolvi a arma ao estojo e fechei. Meu primeiro impulso foi jogá-la no lixo, mas me dei conta de que aquela pistola era tudo o que me restava de meu pai. Supus que o agiota de plantão que, quando meu pai morreu, confiscou para pagamento de dívidas o pouco que tínhamos naquele velho apartamento suspenso na frente do telhado do Palácio da Música, tivesse enviado aquela lembrança macabra para comemorar minha entrada na idade adulta. Escondi o estojo em cima do armário, encostado contra a parede sebosa, que dona Carmen não alcançaria nem com perna de pau, e não voltei a tocar nele durante anos.