O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 38
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
homem do mundo e que todos se dariam conta disso se, por uma vez, a vida se dignasse
a lhe dar uma boa mão de cartas.
— Todo o mal que se faz na vida volta, David. E eu fiz muito mal. Muito. Mas paguei o
preço e a nossa sorte vai mudar. Você vai ver. Você vai ver...
Apesar da insistência de dona Mariana, que era mais persistente que a fome e que já
imaginava como eram as coisas, não voltei a mencionar o assunto de minha educação
com meu pai. Quando a professora entendeu que não havia esperanças, veio me dizer que
todo dia, no final das aulas, dedicaria uma hora a mais só para mim, para falar de livros, de
história e de todas aquelas coisas que tanto assustavam meu pai.
— Será o nosso segredo — disse a professora.
Nessa época, eu já tinha entendido que meu pai tinha vergonha de ser visto pelas
pessoas como um ignorante, um resto de uma guerra em que, como todas as guerras, se
combatia em nome de Deus e da Pátria apenas para tornar ainda mais poderosos homens
que já tinham influência demais antes de provocá-la. Nessa época, comecei a acompanhar
meu pai de vez em quando em seu plantão noturno. Pegávamos o bonde da Rua Trafalgar
que nos deixava na porta do cemitério. Eu ficava na guarita, lendo velhos exemplares do
jornal e, de vez em quando, tentava conversar com ele, uma tarefa árdua. Meu pai quase
não falava mais, nem da guerra nas colônias nem da mulher que o tinha abandonado.
Certa ocasião, perguntei por que minha mãe tinha nos deixado. Suspeitava que tinha sido
por minha culpa, embora tivesse acabado de nascer.
— Sua mãe já tinha me deixado antes mesmo que me mandassem para a guerra. O
idiota fui eu, que não percebi nada até a volta. A vida é assim, David. Cedo ou tarde, tudo
e todos nos abandonam.
— Eu nunca vou abandonar o senhor, pai.
Tive a impressão de que ele ia começar a chorar e abracei-o para não ver seu rosto.
No dia seguinte, sem aviso prévio, meu pai me levou até a loja de tecidos El índio, na
Rua do Carmen. Não chegamos a entrar, mas ele apontou, através das vitrines do
vestíbulo, uma mulher jovem e risonha que atendia os clientes, mostrando panos e tecidos
de luxo.
— É sua mãe — disse. — Um dia desses voltarei aqui para matá-la.
— Não diga isso, pai.
Olhou para mim com os olhos vermelhos e entendi que ainda a amava e que eu nunca
a perdoaria por isso. Lembro que a observei em segredo, sem que soubesse que
estávamos ali e que só a reconheci graças a um retrato que meu pai guardava numa