O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 35
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
convencido de que não queria outra coisa na vida senão aprender a fazer o que o tal de Sr.
Dickens tinha feito. Certa madrugada, acordei de repente sacudido por meu pai, que tinha
saído do trabalho antes da hora. Tinha os olhos injetados de sangue e seu hálito cheirava
a bebida. Olhei para ele aterrorizado e ele tocou com os dedos a lâmpada nua pendurada
num fio.
— Está quente.
Cravou os olhos em mim e jogou a lâmpada contra a parede raivosamente, o vidro
estalou em mil pedaços que caíram no meu rosto, mas não me atrevi dedurá-los.
— Onde está? — perguntou meu pai, a voz fria e serena. Neguei tremendo.
— Onde está esse livro de merda?
Neguei outra vez. Na penumbra, mal vi o tapa chegar. Senti que perdia a visão e caía
da cama, com sangue na boca e uma dor intensa como fogo branco ardendo atrás dos
lábios. Ao virar a cabeça, vi algo que imaginei que fossem pedaços de dentes quebrados
no chão. A mão de meu pai me agarrou pelo pescoço e me levantou.
— Onde está?
— Por favor, pai...
Jogou-me de cara contra a parede com toda a sua força e a pancada na cabeça me
fez perder o equilíbrio e desmoronar como um saco de ossos. Arrastei-me para um canto e
fiquei ali, encolhido como um novelo, olhando meu pai abrir o armário, tirar e jogar no chão
as quatro roupas que eu possuía. Revistou gavetas e baús sem encontrar o livro até que,
esgotado, voltou-se outra vez para mim. Fechei os olhos e esperei pela pancada que
nunca chegou. Abri os olhos e vi que meu pai estava sentado na cama, chorando de
asfixia e vergonha. Quando viu que o fitava, saiu correndo escada abaixo. Ouvi o eco de
seus passos afastando-se no silêncio da madrugada e, quando tive certeza de que estava
bem longe, arrastei-me até a cama e tirei o livro de seu esconderijo embaixo do colchão.
Vesti minha roupa e, com o romance debaixo do braço, fui para a Rua.
Um lençol de bruma descia sobre a Rua Santa Ana quando cheguei à porta da livraria.
O livreiro e seu filho viviam no primeiro andar do mesmo edifício. Eram seis da manhã e
sabia que não era hora de bater na casa de ninguém, mas meu único pensamento naquele
momento era salvar o livro, pois tinha certeza de que, se meu pai o encontrasse ao voltar
para casa, ia destroçá-lo com todo o ódio que carregava no sangue. Toquei a campainha e
esperei. Tive que insistir duas ou três vezes até ouvir a porta do sobrado abrir e o velho
Sempere aparecer, de pijama e chinelo, e ficar me olhando, espantado. Meio minuto mais