O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 34
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
decifrar, que o ofendia. Dizia que quando eu tivesse dez anos ia me obrigar a trabalhar e
que era melhor ir tirando aquelas caraminholas da cabeça, pois do contrário ia acabar me
transformando num desgraçado e num morto de fome. Eu escondia os livros debaixo do
colchão e esperava que ele saísse ou estivesse dormindo para poder ler. Certa vez,
surpreendeu-me lendo de noite e ficou furioso. Arrancou o livro das minhas mãos e o jogou
pela janela.
— Se encontrar você gastando luz de novo para ler essas bobajadas, vai se
arrepender.
Meu pai não era pão-duro e, apesar da miséria em que vivíamos, quando podia me
dava uns trocados para comprar doce como as outras crianças do bairro. Estava
convencido de que gastava aquelas moedas em balas de anis, ou caramelos, mas eu
guardava tudo numa lata de café, debaixo da cama quando conseguia juntar quatro ou
cinco reales, corria para comprar um livro sem que ele soubesse.
Meu lugar favorito em toda a cidade era a livraria de Sempere e Filhos, na Santa Ana.
Aquele lugar cheirando a papel velho e poeira era meu santuário régio. O livreiro deixava
que me sentasse num cantinho e lesse, à vontade, o que quisesse. Sempere nunca
permitia que pagasse pelos livros que me eu lia, mas quando estava distraído, eu deixava
no balcão, antes de ir embora, as moedas que tinha conseguido juntar. Não passava de
uma mixaria e se tivesse que comprar alguma coisa com aquela miséria, com certeza só
daria para comprar toquinho de papel para enrolar cigarro. Quando chegava a hora, eu
partia tendo os pés e a alma, pois se dependesse de mim, fi