O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 33

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA Com freqüência, meu pai desaparecia por alguns dias e, quando voltava, as mãos e suas roupas cheiravam a pólvora, e seu bolso, a dinheiro. Então, vigiava-se em seu quarto e, embora pensasse que eu não percebia, injetava-se pouco ou o muito que tivesse conseguido. No começo, não trancava a porta, mas um dia me pegou espiando e me deu um bofetão que cortou meus lábios. Em seguida, abraçou-me até perder a força nos braços e ficou estendido no chão, a agulha ainda espetada na pele. Tirei a agulha e cobri meu pai com uma manta. Depois daquele incidente, começou a se trancar à chave. Vivíamos em um pequeno sótão suspenso sobre as obras do novo Palácio de Música do Orfeão Catalão. Era um lugar frio e estreito, no qual o vento e a umidade pareciam zombar das paredes. Costumava me sentar num pequeno balcão, com as pernas penduradas, vendo as pessoas passarem e contemplando aquele arrecife de esculturas e colunas impossíveis que crescia do outro lado da Rua. Às vezes, tinha a impressão de que poderia tocá-lo com os dedos e, outras, a maioria, me pareciam tão distantes quanto a lua. Fui um menino frágil e doente, com propensão a febres e infecções que me arrastavam à beira da morte mas que, na última hora, sempre se arrependiam e partiam em busca de uma pessoa de maior envergadura. Quando caía doente, meu pai acabava perdendo a paciência e desaparecia de casa por alguns dias. Com o tempo, comecei a suspeitar que tinha esperança de que eu estivesse morto quando voltasse, para se ver livre do peso daquela criança com saúde de papel, que não lhe servia para nada. Mais de uma vez, desejei que isso acontecesse, mas meu pai sempre regressava e sempre me encontrava vivo, abanando o rabinho e um pouco mais alto. A mãe natureza não tinha pudor de obrigar-me a saborear seu extenso código penal de germes e misérias, mas nunca encontrou um modo de jogar todo o peso da lei da gravidade sobre mim. Contra qualquer prognóstico, sobrevivi aqueles primeiros anos na corda bamba de uma infância anterior à penicilina. Nessa época, a morte ainda não vivia no anonimato e era possível vê-la e sentir seu cheiro por todo lado, devorando almas que nem tinham tido tempo para pecar. Já naqueles tempos, meus únicos amigos eram feitos de papel e tinta. Na escola, tinha aprendido a ler e escrever muito antes das outras crianças do bairro. Onde meus colegas viam manchas de tinta em páginas incompreensíveis, eu via luz, Ruas, gente. As palavras e o mistério de sua ciência oculta me fascinavam e, para mim, eram a chave que abria um mundo sem fim e a salvo daquele caos, daquelas Ruas e daqueles dias turvos em que até eu podia intuir que uma sorte minguada me esperava. Meu pai não gostava de ver livros espalhados pela casa. Havia alguma coisa neles, além das letras que não podia