O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 32
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
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Em meu mundo, as esperanças, grandes e pequenas, raramente se tornavam reali-
dade. Até alguns meses atrás, meu único desejo toda noite ao me deitar era poder reunir
coragem suficiente para dirigir a palavra à filha do motorista de meu mentor, Cristina, e que
as horas que me separavam do amanhecer, para poder voltar à redação de La Voz de la
Industria, passassem logo. Agora, até mesmo aquele refúgio começava a escapar das
minhas mãos. Talvez conseguisse recuperar o afeto de meus colegas, se algum de meus
empenhos fracassasse terrivelmente, dizia comigo mesmo. Talvez os meus pecados de
juventude fossem perdoados, se escrevesse algo tão medíocre e abjeto que nenhum leitor
conseguisse passar do primeiro parágrafo. Talvez aquele fosse um preço alto demais para
voltar a me sentir em casa. Talvez.
Tinha chegado à La Voz de la Industria muitos anos atrás, pela mão de meu pai, um
homem atormentado e sem sorte que, na volta da guerra das Filipinas, tinha se deparado
com uma cidade que preferia não o reconhecer e com uma esposa que já o tinha
esquecido e que, dois anos depois de sua volta, resolveu abandoná-lo. Quando foi
embora, ela deixou sua alma em pedaços e um filho que nunca tinha desejado e com o
qual não sabia bem o que fazer. Meu pai, que mal sabia ler e escrever seu próprio nome,
não tinha eira nem beira. A guerra só lhe ensinou a matar outros homens iguais a ele,
antes que o matassem, sempre em nome de causas grandiosas e ocas que, quanto mais
perto do combate se estava, mais absurdas e vis se mostravam.
Quando meu pai voltou, parecendo vinte anos mais velho do que quando tinha partido,
procurou emprego em várias indústrias do Pueblo Nuevo e do bairro de Sant Martí. Ficava
nesses empregos apenas alguns dias e, cedo ou tarde, eu o via voltar para casa com a
fisionomia endurecida de rancor. Com tempo, na falta de outra alternativa, aceitou um lugar
como vigia noturno em La Voz de la Industria. O salário era modesto, porém, os meses
passaram e, pela primeira vez desde a volta da guerra, parecia que não estava se
envolvendo em confusão. Mas a paz durou pouco. Alguns de seus antigos companheiros
de guerras, cadáveres em vida mutilados no corpo e na alma, que voltaram para ver
mesmas pessoas que os enviaram para a morte em nome de Deus e da pátria respirem
em suas caras, envolveram-no em negócios nebulosos que lhe pareciam brindes, mas que
nunca chegou a entender completamente.