O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 18
PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO
DA
L EITURA
protetor em seu leito de comodidades e perpétuo esquecimento dos tediosos
aborrecimentos da vida cotidiana. Dom Pedro Vidal deslocava-se pela cidade numa
chamejante Hispano-Suiza conduzido pelo chofer da família, Manuel Sagnier, e
provavelmente nunca tinha entrado num bonde em toda a sua vida. Como boa cria de
palácio e estirpe, Vidal não conhecia o lúgubre e macilento encanto que tinham as pensões
baratas na Barcelona da época.
— Não se reprima, dom Pedro.
— Esse lugar parece uma masmorra — proclamou finalmente. — Não sei como pode
viver aqui.
— Com meu salário, a duras penas.
— Se for necessário, pago o que falta para que possa viver em um lugar que não
cheire nem a enxofre nem a mijo.
— Nem pensar.
Vidal suspirou.
— Morreu de orgulho na mais absoluta asfixia. Aí está, um epitáfio grátis.
Por alguns instantes, Vidal perambulou pelo quarto sem abrir a boca, parando para
inspecionar meu minúsculo armário, olhar pela janela com cara de nojo, apalpar a pintura
esverdeada que cobria as paredes e bater suavemente com o indicador na lâmpada nua
que pendia do teto, como se quisesse comprovar que a qualidade de tudo era mesmo
ínfima.
— Mas o que o traz aqui, dom Pedro? Excesso de ar puro em Pedralbes?
— Não venho de casa. Venho do jornal.
— E então?
— Tinha curiosidade de ver onde vivia e, além do mais, tenho uma coisa para você.
Extraiu um envelope de pergaminho branco da jaqueta e me entregou.
— Chegou hoje à redação, em seu nome.
Peguei o envelope e examinei. Estava fechado com um lacre que exibia o desenho de
uma silhueta alada. Um anjo. À parte isso, tudo o que se via era meu nome lindamente
escrito numa caligrafia escarlate de traço requintado.
— Quem é o remetente? — perguntei intrigado. Vidal deu de ombros.
— Algum admirador. Ou admiradora. Não sei. Abra.
Abri o envelope e extraí uma folha dobrada na qual, na mesma caligrafia, lia-se o
seguinte:
Querido amigo: