O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 14

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA dogmáticos sinistros e todo tipo de cretinos que faziam deste mundo um lugar ainda mais miserável, em nome de bandeiras, deuses, línguas, raças ou todo tipo de lixo que usavam para mascarar sua cobiça e sua mesquinhez. Para mim, eles eram heróis heterodoxos, como todos os heróis de verdade. Para dom Basilio, cujos gostos literários tinham se aposentado na idade de ouro da poesia espanhola, aquilo não passava de um disparate colossal. No entanto, diante da boa acolhida que as histórias tiveram e do afeto que, mesmo contra a vontade, sentia por mim, tolerava minhas extravagâncias, atribuindo-as a um excesso de ardor juvenil. — Você tem mais habilidade do que bom gosto, Martín. A patologia que o aflige tem nome e esse nome é grand guignol, que está para o drama assim como a sífilis está para as vergonhas. Obtê-la talvez seja prazeroso, mas daí em diante, tudo desliza ribanceira abaixo. Deveria ler os clássicos, ou pelo menos dom Benito Pérez Galdós, para elevar suas aspirações literárias. — Mas os leitores gostam dos meus contos — argumentava eu. — E o mérito não é seu. É da concorrência, que é tão daninha e pedante que seria capaz, em um único parágrafo, de deixar até um burro em estado catatônico. Vamos ver se amadurece de uma vez por todas e cai da árvore do fruto proibido. Eu concordava fingindo arrependimento, mas acariciava secretamente aquelas palavras proibidas, grand guignol, dizendo a mim mesmo que toda causa, por mais frívola que seja, necessita de um campeão que defenda sua honra. Estava começando a me sentir o mais feliz dos mortais, quando descobri que alguns colegas do jornal estavam incomodados porque o caçula e mascote oficial da redação tinha começado a dar seus primeiros passos no mundo das letras, enquanto suas próprias aspirações e ambições literárias murchavam há anos num limbo cinzento de esquecimento. O fato de que os leitores do jornal lessem avidamente e apreciassem aqueles modestos relatos, mais do que qualquer outra matéria impressa pelas rotativas nos últimos vinte anos, só piorava as coisas. Em algumas semanas, vi que o orgulho ferido das pessoas que há tão pouco tempo eu considerava como minha única família era capaz de transformá-las num tribunal hostil, que me negava a palavra ou mesmo um simples cumprimento, e se comprazia em aprimorar seu talento rejeitado dedicando-me, pelas costas, expressões de escárnio e desdém. Meu sucesso incompreensível era atribuído à proteção de Pedro Vidal, à ignorância e estupidez dos nossos assinantes e ao disseminado e surrado paradigma nacional que decretava que alcançar certo