O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 11

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA negras derramando-se sobre a cidade em forma de chuva, um homem que caminhava buscando a sombra, com sangue nas mãos e um segredo no olhar. Não sabia quem era nem do que fugia mas durante as seis horas seguintes, ia se transformar no meu melhor amigo. Enfiei uma folha na máquina e, sem trégua, comecei a despejar tudo o que tinha dentro de mim. Lutei com cada palavra, cada frase, cada lance, cada imagem e cada letra como se fossem os últimos que jamais escreveria. Escrevi e reescrevi cada linha como se minha vida dependesse daquilo e, depois, reescrevi de novo. Toda a companhia que tinha era o eco incessante do teclado, perdendo-se na sala escura, e o grande relógio da parede esgotando os minutos que restavam até o amanhecer. Pouco antes das seis da manhã, arranquei a última folha da máquina e suspirei derrotado e com a sensação de ter um vespeiro no cérebro. Ouvi os passos lentos e pesados de dom Basilio saindo de uma de suas sestas com hora marcada e aproximando- se lentamente. Juntei as páginas e entreguei a ele, sem me atrever a enfrentar seu olhar. Dom Basilio escolheu uma das mesas próximas, sentou e acendeu a lâmpada. Seus olhos deslizaram para cima e para baixo sobre o texto, sem deixar transparecer nenhuma emoção. Então, largou o charuto sobre a ponta da mesa por um instante e, olhando para mim, leu em voz alta a primeira linha. — “Cai a noite sobre a cidade e as Ruas carregam o cheiro de pólvora como o hálito de uma maldição." Dom Basilio me olhou de esguelha e eu me escudei num sorriso que deixava todos os dentes à mostra. Sem dizer nada, levantou e partiu com meu conto nas mãos. Vi que caminhava até o escritório e fechava a porta depois de entrar. Fiquei petrificado, sem saber se devia sair correndo ou esperar o veredicto de morte. Dez minutos depois, que para mim foram dez anos, a porta do escritório do subdiretor se abriu e a voz retumbante de dom Basilio se fez ouvir em toda a redação. — Martín. Faça o favor de vir aqui. Arrastei-me tão lentamente quanto pude, encolhendo vários centímetros a cada passo, até que não tive outro remédio senão meter a cara e levantar os olhos. Dom Basilio, o temível lápis vermelho em riste, me olhava friamente. Quis engolir saliva, mas tinha a boca seca. Dom Basilio pegou as laudas e devolveu. Agarrei-as e dei meia-volta rumo à porta tão rápido quanto pude, pensando que sempre haveria lugar para mais um engraxate na recepção do hotel Colón.