O joo do anjo Carlos Ruíz Zafón - O Jogo do Anjo | Page 10

PDL – P ROJETO D EMOCRATIZAÇÃO DA L EITURA O plano era o seguinte. Por motivos que dom Basilio não considerou oportuno esclarecer, a última página da edição dominical, tradicionalmente reservada para um relato literário ou de viagem, tinha caído na última hora. Tratava-se de uma narrativa de índole patriótica e inflamado lirismo sobre a saga dos almograves, na qual, canção vai, canção vem, eles salvam a cristandade e tudo o que há de decente sob o céu, a começar pela Terra Santa e a terminar pelo delta do Llobregat. Lamentavelmente, o texto não chegou a tempo ou, suspeitava eu, Basilio não tinha a menor vontade de publicá-lo. Isso nos deixava a seis horas do fechamento e sem nenhum outro candidato para substituir o conto senão um anúncio de página inteira de uma marca de cintas feitas de osso de baleia, que prometiam quadris de sonho e imunidade às macarronadas. Diante do dilema, o conselho editorial determinou que estufássemos o peito e convocássemos os talentos literários que brotavam em todos os cantos da redação, a fim de tapar o buraco e ocupar as quatro colunas com um texto de interesse humano, para o deleite de nossa leal audiência familiar. A lista de talentos comprovados disponíveis era composta de dez nomes, nenhum dos quais, é claro, era o meu. — Amigo Martín, as circunstâncias conspiraram para que nenhum dos paladinos da lista esteja aqui de corpo presente ou possa ser localizado numa margem de tempo prudente. Diante do desastre iminente, resolvi lhe dar uma oportunidade. — Conte comigo. — Conto com cinco laudas em espaço duplo, antes das seis horas, dom Edgar Alan Poe. Traga uma história, não um discurso. Se quisesse um sermão, iria à missa do galo. Traga uma história que não tenha lido antes ou, se já tiver lido, que venha tão bem escrita que eu nem perceba. Já ia sair correndo quando dom Basilio levantou, rodeou a escrivaninha e apoiou sua mão, do tamanho e do peso de uma bigorna, no meu ombro. Só então, ao vê-lo de perto, percebi que seus olhos sorriam. — Se a história for decente, pagarei dez pesetas. E se for mais que decente e agradar aos leitores, publicarei outras. — Alguma indicação específica, dom Basilio? — perguntei. — Sim: não me decepcione. Passei às seis horas seguintes em transe. Instalei-me na mesa que ficava bem no meio da redação, reservada para os dias em que Vidal cismava de passar um tempinho no jornal. A sala estava deserta e mergulhada numa penumbra feita com a fumaça de dez mil charutos. Fechei os olhos um instante e invoquei uma imagem: um manto de nuvens