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 ESPECIAL EMERGÊNCIA um ciclone, dois ciclones. Cascais, Joana Lopes Clemente O mundo está ao contrário. Um avesso que teve início na noi- te de 15 de março, a muitos milhares de quilómetros daqui. Um avesso que veio para ficar, que agitou as notícias, as conversas de café e as explicações em família à mesa de jan- tar. Os corações de alguns, o sono de outros, os temas abordados na escola e em consequência disso, o mealheiro de algumas crianças que quiseram ajudar quem, como elas, não escolheu o sítio onde nasceu. Falou-se do vento, da chuva, das conse- quências devastadoras das alterações climáticas, das casas que desaparece- ram e das estradas e pontes que não há, da morte, do risco das epidemias, da necessidade da reconstrução. Os tele- jornais encheram-se de histórias, o país deu as mãos, as pessoas envolveram- -se em campanhas e doaram dinheiro, mantimentos, o seu tempo precioso e os fins-de-semana que deveriam ter ser- vido para descansar. Falou-se dos números: 1,8 milhões de pessoas afetadas pela passagem do ciclone Idai, mais de 1 milhão de des- locados nesta zona, 603 mortos (em Moçambique e mais de 1.000 no total), 390 milhões de dólares necessários para acudir a população (e apenas 88 mi- lhões recolhidos), 4 mil casos de cólera registados, e décadas para reverter uma circunstância que demorou apenas 4 horas a emergir à vista de todos! Mas o mundo é imenso e impiedosa- mente rápido. O mundo, fora dos nos- sos telejornais, imprensa escrita e redes sociais (que fazem o escrutínio do que é e do que deixou de ser assunto do dia), tinha outros temas em agenda. O mun- do noticioso decretou que este assunto já não é assunto, o governo moçambi- cano decretou que recomeçassem as aulas e que os sobreviventes refizessem (com o quê?) as suas casas em zonas menos arriscadas, e a natureza decretou que Moçambique seria atingido, pela segunda vez em 6 semanas, pelo pior ciclone de sempre a atingir um país no hemisfério sul: o Kenneth. O medo cumpriu um papel preponde- rante nas consequências desta passa- gem, mais uma vez arrasadora, arbi- trária, impiedosa. O medo arrastou as pessoas para pontos de abrigo (igrejas, escolas...) e manteve-as lá dentro en- quanto as chuvas, recordação viva do ci- clone que passou mas não passava, não permitiram um regresso. Regresso que, em muitos casos, não se fez. Cabo Delgado tem a mais alta taxa de habitação precária em Moçambique. As casas, que caem e voam com a passa- gem do tempo, ofereceram de bandeja as paredes e tetos ao Kenneth que, sem esforço, fez milhares de desalojados. A zona mais fortemente atingida é feita destas casas e das pessoas que vivem nestas casas. Uma zona já de si profícua em anonimato e esquecimento. Uma zona em que não há casas comerciais e armazéns de abastecimento de comida para serem destruídos ou aeroportos que possam fechar portas. A dispersão populacional é grande, assim como o abandono a que a população está habi-