a transmutação do corpo em espírito( s).
Ao iniciar a pesquisa, Elório pouco achou de relevante. Procurou nos relatos sobre festividades e não muito havia sobre as bebidas. No entanto, quando, por acaso, se pôs a olhar com mais atenção às celebrações, foi atraído pelos ritos de morte do país. No primeiro Brasil, aquele do século XIX, a morte era um rito de passagem celebrado. O sujeito preparava--se para partir, e o egresso prematuro era visto como grande infortúnio, não apenas pela tragédia, mas sobretudo porque não havia tomado lugar o devido preparo, não estavam postos sinais que anunciassem o adeus. Conta-se que tamanha era a celebração que, em seu leito de morte, o indivíduo não recebia visitas apenas dos conhecidos mais próximos, tampouco buscava morrer na solidão dos leitos de hospitais. Estranhos, desconhecidos, mesmo os elementos do chamado populacho atendiam aos preparos fúnebres daqueles mais abastados. Como o contato com o paraíso se iniciava nos feitos terrestre, o futuro morto anunciava reparações: dívidas eram pagas, santos eram investidos da condição de advogados nos testamentos, filhos bastardos eram reconhecidos, heranças deixadas para filhos com escravas. Em determinado momento, as rezas paravam de pedir pela saúde do doente para clamar por sua morte. As músicas eram tocadas por negros, membros de irmandades, soldados e quem quer que desejasse ser parte do trajeto. Esse tom festivo, no nosso primeiro Brasil, de maneira alguma foi limitado aos sepultamentos cristãos. Os funerais africanos, sobretudo aqueles para indivíduos de prestígios nos grupos deslocados para cá, eram tão acesos quanto, utilizando-se de foguetórios, músicas guiadas por tambores, bombas e danças agitadas.
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Elório rapidamente percebeu que o óbito no Brasil, antes de tragédia, documento ou privacidade, era um ato autenticamente público e rico, pois, mais do que representar a reiterada mistura,“ popularizava” aquele corpo social. Já percebe o leitor? Finar-se e embriagar-se. De igual feição, portanto, haveria de ser a história inventada dos espíritos da terra. Elório compreendeu que o compêndio das nossas bebidas deveria ser retirado dos ingredientes dessa experiência, justamente naquele momento de caricaturas, de barulhos, de intimidade, de exotismo. Das raízes curandeiras dos indígenas, das cores vivas das celebrações do continente africano, do profano palpável do cristianismo europeu, das frutas da terra, de todo aquele ritual de passagem, era aqui que seria forjada sua obra.
“ Tal qual a morte, os espíritos causam êxtase e inebriam. Se no rito de partida estou certo de que chegarei arrependido, indulgente, amável e desejando ser amado, asseguro-lhes que, ingeridas essas bebidas, chegarão vocês também ao fim dessa outra jornada declarando veneração e paixão a quem quer que seja, buscando a absolvição das grosserias há pouco cometidas, ardendo de desejo e libido, possivelmente no prenúncio de ações que serão mais adiante justificadas. Tal qual o quarto de um futuro morto, o balcão do bar deve ser festa, um verdadeiro banquete! O silêncio que fique do lado de fora, pois aqui dentro indivíduos são tomados por espíritos, os mais diversos possíveis. Entra preto, branco, mulato, morador da rua, morador da casa, soldado, protestador, poeta, padre. Musicar é dever de todos: gritem, chorem, façam dos objetos percussão, finjam o choro, adotem o olhar do curioso, do intrometido, tomem instrumentos nas mãos, discutam, briguem, certos de que ao fim tudo será restabelecido. Contudo, tenham a certeza de que nesse território espíritos são forjados. Vive-se aqui, nesse cenário que confunde morte com festa e espiritual com etílico, a celebração e a re-