Madame Eva Nº2 | Page 19

MAÇAPÃO DE CASTANHA-DE-CAJU

“ N a quela terra não há apenas caipirinha!”. Numa dessas andanças por cidades europeias, Elório engatou briga com um grupo de estrangeiros desavisados. Percorrendo o globo fixado na parede, danaram a investigar os países conforme suas bebidas. Na vez do Brasil, de pronto surgiu a Caipirinha.“ É simples de fazer porque os brasileiros não conseguem percorrer longas distâncias sem desperdiçar um puto que seja de dinheiro. São corruptos, não são? Tem açúcar, já sei, é porque foi assim que eles foram descobertos, não é? Estavam a enviar açúcar à Europa. O limão é do verde da bandeira, é da Amazônia que...”, e lá se vão gargalhadas. Elório aguentou essas poucas frases e gritou:

“ Ignorantes, bêbados que se valem do álcool para cagar as asneiras de que se alimentam o ano inteiro: naquela terra não há apenas caipirinha!”. Não me cabe aqui discorrer acerca da óbvia leviandade daquelas piadas. Atrai-me o porquê da irritação de Elório. Identidade é coisa séria; não serão estrangeiros que escolherão qual bebida define o país, qual porquê melhor explica uma simples receita. Narrar a continuação da briga não serve de nada; as consequências, sim.
Voltando ao Brasil, Elório foi atrás da história das bebidas alcóolicas do seu país. Procurou em livros sobre os hábitos dos indígenas, da colônia, do Império, das Repúblicas, e pouco achou. Encontrou, sim, manuais que discorriam sobre a gastronomia brasileira desde o século XVI e até um pouco antes, ou, ainda, sobre tudo que os portugueses acharam e que não tinham por lá. Não era suficiente e, sob essas circunstâncias, não titubeou:
“ Vou escrever um livro e ele vai se chamar‘ História( inventada) dos espíritos do
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Por João Henrique Nascimento Dias
Brasil’. O mundo há de conhecer o que há para além da Caipirinha em minha terra”. A história seria inventada e não se ateria relatos consistentes sobre as bebidas. Não se tratava de achar possivelmente a segunda bebida mais popular entre os brasileiros.
Onde estariam escondidas essas receitas? Onde encontrar esses“ bons drink”? Viajou pelo país o quanto pôde. Tomou das garrafas de cachaça temperadas no caranguejo; dos licores que supostamente continham sangue de bichos, dentes de micos, órgãos de sucuris; dos líquidos pastosos com cor de mel e enfestados de grãos que ora pareciam pertencer à culinária brasileira, ora lembravam sementes dessas que se vê jogadas no chão. Concluiu: os espíritos que procurava estavam aí para ser forjados, idealizados, tramados e, por que não, rubricados na cultura brasileira. Não seria casual ou acidental essa história inventada. Trata--se de tarefa das mais árduas, algo que remete ao esforço de Mário de Andrade em Macunaíma, ao encantamento de Gonçalves Dias com a terra, ao registro literário-etnográfico de Jorge Amado em Tenda dos Milagres. Se houvesse que futuramente se preocupar com o que deixar à pátria, Elório estava certo:“ Deixarei uma pátria que não é apenas da Caipirinha”. Pois bem, hoje sua obra está ao alcance de todos. Há, por aqui, muito mais do que cachaça-limão-açúcar-e-gelo:
“ Maçapão de castanha de caju, raspas de limão mineiro, raiz de sapucaia, umbu à vontade, cachaça, um dedinho de vinho da terra. Bate-se tudo. Por fim, uma rodela de abacaxi vai dentro e tem-se o
. Casca de araticum, dez pitangas, três abajerus, um punhado de amora-branca. Mistura-se tudo com