guos“ ésses”, que ora se juntavam com os“ ós”, ora se confundiam com os“ seis”, o que fazia voltar o medo de não conseguir dar conta de visualizar os duzentos e seis que era esperado que contasse.
As alamedas faziam-se avenidas, que se faziam ruas, que se faziam vielas, que se faziam becos, que se faziam sinistros corredores mal-assombrados em granito, mármore e cimento branco.
-Talvez por isso me escolheram, pensou, sou o único que não acredita em assombrações.
Em outras circunstâncias, teria sorrido ironicamente de si para si. Em outras circunstâncias. Ali, seu inconsciente o deteve e soçobrou tais ideias ao fundo do seu consciente. Não acreditar em assombrações queria dizer que não pensava nelas, mas se obrigado a pensar, sabe-se lá a que conclusão chegaria.
-Estou aqui porque me julgaram o mais frio.
Vinham-lhe umas providências à cabeça, achou por bem focar-se nelas. Era uma estratégia que usava desde menino, a cada vez que duvidava de suas competências: pensava em coisas práticas que não comprometessem o entendimento abstrato que tinha do mundo. Era o“ contar carneirinhos” que ensinam às crianças insoniosas.
A caravana parou e os três homens que a guiavam começaram a falar menos. Tomaram suas posições e puseram-se a trabalhar. À inconveniência da chuva juntaram-se as moscas-mirins. Só Tarso parecia incomodado. Com dois cilindros e uma alavanca de ferro, a placa de granito deslizou com repiques por cima do nome de família de seus vizinhos eternos.
Aos olhos esgazeados, viu a decomposição da madeira e teve certeza de não querer ver mais nada! Faltava, porém, contar duzentos e seis, afinal, ele era o mais frio dentre os irmãos e não acreditava em assombrações. Com dois passos curtos, aproximou-se e inclinou a cabeça, um pouco por respeito, um pouco para ver melhor. Não tardou para que a conversa dos três homens aos poucos voltasse. Tarso manteve a angulação do guarda-chuva, de sorte a que nenhum dos presentes pudessem ver sua face.
Começou a contagem. Uma fiscalização, mais do que qualquer outra coisa. E se lhe fugisse um? Ninguém nunca saberia. Mas não podia faltar. Tarso manteve-se atento, aproximou-se mais – revirou-se seu estômago – cerrou o punho que não segurava o guarda-chuva, franziu a testa, para encarar sozinho e em silêncio aquele atentado à carne.
A coisa toda não demorou mais do que cinco minutos e quando os homens lhe comunicaram o término, Tarso quis permanecer ali mais uns quantos instantes. O difícil, ele já sabia, era a vida depois de visualizar os duzentos e seis. Voltou a lembrar-se da imagem que seus irmãos tinham dele, e isso o reconfortou de certa forma. Nenhum outro irmão aguentaria aquele fardo.
Voltou pelo corredor que se fez alameda. Passou pelo arco em madeira, ricamente adornado, com um senso de dever cumprido, onde foi recepcionado por sua irmã mais nova. E aquele abraço apertado fê-lo sentir duzentos e seis. Um por um vieram seus familiares agradecê--lo e toda vez era duzentos e seis.
Aos olhos de Tarso, os homens reduziam-se agora àqueles duzentos e seis que havia sido encarregado de contar. O pó ao qual voltamos são os duzentos e seis que nos acompanham na vida e na morte. A única permanência, pensou,
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