SANGUE QUE REINA
SANGUE QUE REINA
Por Rameu Novejali
Hoje minha avó chorou, vi-a cair aos prantos. Minha avó recebe a notícia da morte do filho e grita, grita; mas grita enfrentando a morte. Há quem diga que se trata da certeza cristã – se a morte não parou Cristo, não há de parar meu Tio. Tome essa versão e acrescente que a Vó sempre enfrentou tudo e não haveria como ser diferente, nem se as divindades fossem Thanatos, Ankou ou Supay. A avó segurava, a ponto de quase rasgar, o vestido à altura do coração; bravejou inúmeras vezes“ por que não eu?!”. Por vezes, olhando nos olhos de cada um de nós, afirmava que ele havia sido um bom filho. De repente, a avó, avançada em seus cerca de noventa anos, levantou, surpreendendo a todos, e avançou, novamente, enfrentando a morte.
É nesses momentos em que a Família é repensada, os laços são questionados e principalmente tomados ao pensamento de forma inusitada. Peço desculpas pela abrupta mudança no registro ou estilo literário, a morte apronta essas coisas, sobretudo quando a enfiamos no papel. No entanto, retomando a empreitada: não há lógica que entenda a Família, não há regra que decifre o emaranhando de irracionalidades que governa essa entidade.
Um velho vivido afirmou que o sangue é o elemento que Deus encontrou para persistentemente fazer o homem entender que até a racionalidade, atributo que tanto celebramos, é fruto do divino ou, para os céticos, do emotivo, do irracional. Dos órgãos, o cérebro é o que mais sangue consome justamente para nos recordar diariamente que sem o coração ele não funciona. Não produz, não sonha, não calcula: não é. Como se Deus nos dissesse que de nada nos adianta rejeitar as irracionalidades, sem elas o cérebro morre. Nessa digressão também se enquadra a família: vou morrer infeliz e seco, se tentar explicar a força e as incongruências do sangue pela via da cabeça: pensar, na verdade, atrapalha.
Não fui eu quem primeiro disse isso, provavelmente o disseram milhares de anos atrás, mas Fernando Pessoa, com seu Alberto Caeiro, o descreveu habilmente. Pensar entra no caminho dos sentidos, na trilha dos sentidos captamos as coisas como elas são, como elas se nos apresentam na forma mais cândida. Família é sangue, sangue que não pensa, vermelho que apenas sente e corre, que chega ao cérebro e afirma: vim para reinar.
Ismael Bezerra © 2016
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