Madame Eva Nº1 | Page 16

SANGUE QUE REINA
SANGUE QUE REINA
Por Rameu Novejali

Hoje minha avó chorou , vi-a cair aos prantos . Minha avó recebe a notícia da morte do filho e grita , grita ; mas grita enfrentando a morte . Há quem diga que se trata da certeza cristã – se a morte não parou Cristo , não há de parar meu Tio . Tome essa versão e acrescente que a Vó sempre enfrentou tudo e não haveria como ser diferente , nem se as divindades fossem Thanatos , Ankou ou Supay . A avó segurava , a ponto de quase rasgar , o vestido à altura do coração ; bravejou inúmeras vezes “ por que não eu ?!”. Por vezes , olhando nos olhos de cada um de nós , afirmava que ele havia sido um bom filho . De repente , a avó , avançada em seus cerca de noventa anos , levantou , surpreendendo a todos , e avançou , novamente , enfrentando a morte .

É nesses momentos em que a Família é repensada , os laços são questionados e principalmente tomados ao pensamento de forma inusitada . Peço desculpas pela abrupta mudança no registro ou estilo literário , a morte apronta essas coisas , sobretudo quando a enfiamos no papel . No entanto , retomando a empreitada : não há lógica que entenda a Família , não há regra que decifre o emaranhando de irracionalidades que governa essa entidade .
Um velho vivido afirmou que o sangue é o elemento que Deus encontrou para persistentemente fazer o homem entender que até a racionalidade , atributo que tanto celebramos , é fruto do divino ou , para os céticos , do emotivo , do irracional . Dos órgãos , o cérebro é o que mais sangue consome justamente para nos recordar diariamente que sem o coração ele não funciona . Não produz , não sonha , não calcula : não é . Como se Deus nos dissesse que de nada nos adianta rejeitar as irracionalidades , sem elas o cérebro morre . Nessa digressão também se enquadra a família : vou morrer infeliz e seco , se tentar explicar a força e as incongruências do sangue pela via da cabeça : pensar , na verdade , atrapalha .
Não fui eu quem primeiro disse isso , provavelmente o disseram milhares de anos atrás , mas Fernando Pessoa , com seu Alberto Caeiro , o descreveu habilmente . Pensar entra no caminho dos sentidos , na trilha dos sentidos captamos as coisas como elas são , como elas se nos apresentam na forma mais cândida . Família é sangue , sangue que não pensa , vermelho que apenas sente e corre , que chega ao cérebro e afirma : vim para reinar .
Ismael Bezerra © 2016

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